quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A princesa da água da vida

Era uma vez, quando não havia tempo, no País do Lugar Nenhum, uma pobre garota chamada Raida, que vivia solitária em uma pequena cabana.
Um dia, caminhando pelo bosque, Raida viu que um enxame de abelhas havia bandonado sua colméia, e decidiu recolher o mel.
- "Levarei esse mel ao mercado e o venderei. Com o dinheiro que conseguir procurarei melhorar de vida", disse para si mesma.
Raida correu para casa e voltou com um pote, enchendo-o de mel. Ela não sabia no entanto que a causa de sua pobreza era um gênio maléfico que tentava por todos os meios impedir que ela tivesse êxito em qualquer coisa.
O gênio acordou quando alguma coisa lhe disse que Raida estava começando a fazer algo de útil. Ele correu ao lugar onde ela se encontrava com a intenção de causar-lhe problemas. Logo que viu Raida com o mel o gênio se transformou em um galho de árvore e empurrou seu braço, de maneira que o pote caiu e quebrou, entornando todo o mel. O gênio ainda sob a forma de um galho, ria-se com satisfação, balançando-se de um lado para o outro.
-"Isto a deixará furiosa!", disse para si mesmo.
Mas ela apenas contemplou o mel e pensou:
- "Não importa, as formigas vão comer o mel, e talvez algo surja disso."
Raida tinha visto uma fileira de formigas cujas exploradoras já estavam experimentando o mel para ver se lhes seria útil. Quando começou a atravessar a floresta, no caminho de volta para sua cabana, Raida notou que um cavaleiro estava vindo em sua direção. Quando estava a apenas alguns metros dela, o homem levantou o chicote displicentemente e, ao passar, bateu num galho. Raida viu que era uma árvore de amoras, e que o golpe tinha feito com que as frutas maduras caissem no chão. Ela pensou:
- "Boa idéia. Recolherei as amoras e as levarei ao mercado para vendê-las. Talvez algo surja disso."
O gênio a viu juntando as frutas e riu-se por dentro. Quando ela terminou de encher seu cesto ele se transfromou em um burro e a seguiu silenciosamente pelo caminho que levava ao mercado. Quando Raida se sentou para descansar, o gênio sob a forma de burro aproximou-se, esfregando o focinho, e então de repente a horrível criatura se jogou sobre o cesto de amoras, esmagando-as até a polpa. O suco espalhou-se pelo caminho, e o falso burro afastou-se galopando alegremente entre os arbustos.
Raida olhou para as frutas com desânimo. Nesse momento no entanto a rainha estava passando por ali, a caminho da capital.
- "Detenham-se imdediatamente!" - ordenou aos carregadores da liteira. - "Essa jovem perdeu tudo. Seu burro esmagou as frutas e fugiu. Ela estará perdida se não a ajudarmos."
Assim foi que a rainha convidou Raida a subir em sua liteira, e rapidamente se tornaram amigas. A rainha deu uma casa a Raida, e logo ela se converteu em uma próspera comerciante, por seus próprios méritos.
Quando o gênio viu como as coisas estavam indo bem para Raida, deu uma boa examinada na casa para ver o que poderia fazer para arruiná-la. Ele percebeu que todas as mercadorias eram guardadas em um armazém atrás da casa. De modo que botou fogo na casa e no armazém, que se queimaram até os alicerces em menos tempo que se leva para contar.
Raida saiu da casa correndo quando sentiu o cheiro da fumaça, e contemplou as ruínas com pesar. Então percebeu que uma fila de pequenas formigas estava se formando. Elas carregavam grão a grão su reserva de milho, que estivera embaixo da casa, para outro local de maior segurança. Para ajudá-las, Raida ergueu uma grande pedra que cobria o formigueiro, e debaixo dela brotou uma fonte de água. Enquanto Raida a experimentava as pessoas da cidade iam se juntando à sua volta, exclamando:
- A água da vida! Isto é que foi profetizado!
Elas contarama à Raida como havia sido profetizado que, um dia, depois de um incêndio e de muitos desastres, uma fonte seria encontrada por uma jovem que não se afligia com as calamidades que lhe aconteciam. Esta seria a última fonte da vida.
E foi assim que Raida se tornou conhecida como a Princesa da Água da Vida, da qual até hoje é guardiã. Essa água pode ser bebida para dar imortalidade àqueles que a encontram, por não se impressionarem pelas calamidades que lhes possam ocorrer.

                                                                     -X-


Desejo a todos um feliz natal e um ano novo cheio de saúde, realizações e alegrias. Que possamos olhar para as nossas dificuldades e impedimentos com atenção, aprendizagem, capacidade de adaptação e reação. Agir através das "pequenas ações" que podemos verdadeiramente executar em nosso dia-a-dia. Ou seja, viver sempre no presente, aproveitando o passado como lição aprendida e o futuro como meta a ser atingida. Acredito que essa é a única forma de vencermos o "gênio maléfico", que só existe dentro de nós. Muita "água da vida" para todos nós!! Feliz 2012!

("A Princesa da Água da Vida" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 244.)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A capacidade de sentir culpa

Não existem evidências de que pessoas consideradas normais, sejam incapazes de desenvolver um senso moral que possibilite o sentimento de culpa. No entanto existem graus de sucesso ou fracasso no desenvolvimento do senso moral, tanto em adultos como em crianças. Essa característica não se relaciona em nada com a capacidade ou incapacidade intelectual do indivíduo, mas está totalmente atrelada ao seu desenvolvimento emocional.
Desde o nascimento inicia-se um complexo processo de medição e mediação de forças: os instintos que procuram pelo imperioso objetivo de se satisfazerem (pulsões do id) e, o desenvolvimento das forças de controle sobre os instintos (mediação do ego). Aos poucos e gradativamente, a criança passa a adquirir forças de controle através da introjeção ou incorporação dos limites que o ambiente lhe apresenta (a educação). A contenda entre id e ego fez com que Freud criasse um nome específico para tratar essa questão: superego. Como sei que muitos dos leitores deste blog não são psicólogos ou não possuem contato com expressões psicanalíticas, tomo aqui o cuidado de explicitar o significado dos termos que utilizei acima: "pulsão" - processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo; "id" - polo pulsional da personalidade cujos conteúdos são inconscientes; "ego" - polo defensivo da personalidade responsável pelos mecanismos de defesa do "eu"; "superego" - instância da personalidade responsável pela introjeção e interiorização das interdições parentais (Vocabulário da Psicanálise - Laplanche e Pontalis - Martins Fontes).        

Pois bem, a palavra introjeção significa uma aceitação mental e emocional de alguma dificuldade ou limite apresentado pelo ambiente. Isso ocorre durante toda a vida mas, principalmente durante o processo educacional. Neste caso a ansiedade amadureceu rumo ao sentimento de culpa, que irá se instalar na essência da intenção criminosa, antes da realização do crime em si.
Isso é muito diferente de imposição! Quando algo é imposto e inculcado, a essência verdadeira do indivíduo não se modificou! Isso pelo simples fato de não ter ocorrido a aceitação mental e emocional, ingredientes fundamentais para que o controle dos instintos possa ocorrer de dentro para fora e, de forma verdadeira. A situação contrária onde os instintos são controlados de fora para dentro, se assemelha mais a um ambiente autoritário e ditador, onde o medo de ser descoberto é o único responsável pelo mínimo convívio social existente. Basta uma pequena distração do controle externo para que o caos se estabeleça. Não somos capazes de aceitar mentalmente e emocionalmente, nada que nos seja imposto e enfiado goela abaixo. Principalmente fatos e limites que discordamos ou não aceitamos, mesmo que sejam ridiculamente coerentes e pertinentes. Em outras palavras, a incapacidade em ter limites e moralidade do adulto, provavelmente esteja relacionada com a sua impossibilidade enquanto criança, em ter desfrutado de um ambiente que lhe proporcionasse o tempo necessário para que essa difícil digestão ocorresse. Certamente existem limites para que a culpa se expresse e, há uma psicopatologia do sentimento de culpa, que pretendo abordar em uma próxima publicação. Mas a capacidade de sentir culpa mesmo quando inconsciente e aparentemente irracional, implica um certo grau de crescimento emocional, normalidade psíquica, e esperança.  

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O sentimento de culpa

No senso comum o sentimento de culpa é normalmente atribuído e relacionado ao ensinamento religioso e moral. Nessa perspectiva não fazer o mal para o "outro", passa por garantir perante os olhos do "criador" o exemplo de um bom comportamento e, talvez a garantia da "conquista de algum bônus" para o "dia do julgamento final". Sem dúvida nenhuma essa forma de pensar e sentir produz resultados sociais, que a sua maneira garantem o convívio social e um certo respeito aos limites e fronteiras entre o indivíduo e seus "semelhantes". Aqueles que sustentam esse ponto de vista acreditam que a moralidade precisa ser inculcada desde muito cedo e ensinam as crianças pequenas de acordo com essa idéia.

Para a psicanálise as fundações do sentimento de culpa estão fixadas no crescimento emocional do indivíduo e na sua capacidade em conviver socialmente, dentro de uma certa harmonia entre o "eu" e o "tu". As influências culturais são sem dúvida muito importantes e variam de lugar para lugar. Podemos verificar essa informação através das diversas variações de comportamentos, existentes entre povos e famílias de culturas diferentes.
Diferentemente da visão moralista e religiosa, podemos dizer que através de uma perspectiva "evolucionista" a capacidade de se sentir culpado é uma conquista pessoal e uma das garantias que a espécie humana necessita para sobreviver e perdurar. Se não houver respeito mútuo, a espécie humana poderá correr um sério risco de sobrevivência. E como em todo processo de amadurecimento, a moralidade também precisa se desenvolver naturalmente e de modo pessoal. Cabe ao ambiente facilitar e proporcionar os meios necessários para que isso ocorra.

E por que razão é importante distinguir entre a moralidade imposta e a moralidade naturalmente desenvolvida? Freud mencionou que a verdadeira culpa se situa na intenção inconsciente. O crime verdadeiro não é a causa do sentimento de culpa; é antes o resultado dessa culpa, que pertence à intenção criminosa (interna). Somente a culpa "legal" (externa) se relaciona com o crime; a culpa moral se relaciona com a realidade interna. Em outras palavras isso significa que há um paradoxo entre dois tipos de culpa: 1) Uma culpa externa e legal que se relaciona com o "crime" e; 2) Uma culpa moral e interna que se relaciona com uma intenção "criminosa" pré-existente. Pois bem, se levarmos em conta as diferenças existentes entre a moralidade inculcada pelo ambiente e, a moralidade que se desenvolveu naturalmente com a ajuda do ambiente, acredito que esse paradoxo seria bem menor e os resultados seriam percebidos no tipo de sociedade que indivíduos espontâneos e criativos poderiam conviver. A moralidade inculcada possui um compromisso com a aparência externa, enquanto a moralidade desenvolvida possui um compromisso com as verdadeiras intenções inconscientes.
Como um exercício de ficção, imaginem um mundo cheio de desigualdades onde ninguém respeitasse ninguém e aqueles que possuíssem poder econômico levariam grandes vantagens sobre os que não tivessem o mesmo poder: Ricos que cometeriam crimes e não seriam punidos; pessoas que comprariam orgãos para "furar" filas de transplantes e tirar vantagens; escolas boas existiriam somente para quem pudesse pagar; nações inteiras passariam fome por pura falta de interesse, responsabilidade e investimentos em infra-estrutura; uso indevido do dinheiro público e coletivo; etc. Ainda bem que essas coisas não existem e este é apenas um exercício de ficção...

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A serpente

Certa vez um caçador passava por uma mina quando viu uma serpente presa sob uma pedra enorme. Ao vê-lo a serpente pediu:
- Por favor, ajude-me. Levante a pedra.
- Não posso ajudar você, pois vai me devorar com certeza - respondeu o caçador.
O réptil tornou a pedir ajuda, prometendo ao homem que não o comeria. Ele então libertou a serpente, que logo fez um movimento em sua direção como se fosse atacá-lo.
- Você não prometeu que não me comeria se a ajudasse? - perguntou o homem.
- Fome é fome - respondeu-lhe a serpente.
- Mas - disse o caçador - se você faz alguma coisa errada, que tem a fome a ver com isso?
O homem então sugeriu que submetessem o assunto à opinião de outros. Entraram no bosque, onde encontraram um cachorro. Perguntaram-lhe se achava que a serpente deveria comer o homem.
- Uma vez pertenci a um homem - disse o cão. - Ele caçava lebres e sempre me dava a melhor carne para comer. Agora que estou velho e nem posso apanhar uma tartaruga, ele quer me matar. Assim como recebi mal em troca de bem, a serpente deveria fazer a mesma coisa. Declaro que ela deveria comer você.
- Você ouviu sua sentença - disse a serpente ao homem.
Decidiram porém que ouviriam três opiniões e não apenas uma, e seguiram adiante. Pouco depois encontraram um cavalo e lhe pediram que julgasse o caso.
- Acho que a serpente deveria comer o homem - disse o cavalo, e continuou: - Certa vez tive um amo. Ele me alimentou enquanto eu podia viajar. Agora que estou fraco e não posso executar minhas tarefas, ele quer me matar.
- Já temos dois juízos unâmines - disse a serpente.
Um pouco mais adiante cruzaram com uma raposa.
- Cara amiga - disse o caçador, - preciso da sua ajuda. Estava passando por uma pedreira quando vi esta enorme serpente às portas da morte, presa sob uma enorme rocha. Pediu-me que a libertasse; fiz o que pedia, e agora ela quer me comer.
- Se devo dar minha opinião - respondeu a raposa, - voltemos ao lugar do ocorrido para analisar a situação de modo mais real.
Voltaram a pedreira e a raposa, para reconstituir os fatos, pediu que a pedra fosse colocada em cima da serpente. Assim foi feito.
- Era assim que você estava? - perguntou a raposa.
- Sim - respondeu a serpente.
- Muito bem - disse a raposa. - Ficará assim pelo resto da vida.

("A Serpente" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 238.)


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"Caminho do Rei" - Tarô

Diz a história que a palavra tarô é o resultado da junção de duas palavras egípcias: "tar" (caminho, rota) e "rho" (real, rei). Pode-se dizer que seu significado esteja atrelado ao percurso individual que o indivíduo deve fazer para desenvolver sua consciência e percepção da realidade objetiva que o cerca. Utilizando a simbologia do Livro dos Mortos Egípcio, os arcanos seguem o princípio que todo Homem nasce provido de dons e conhecimentos herdados dos seus antepassados (self) que devem ser desenvolvidos para a realização da grande tarefa de contribuir para a evolução e aperfeiçoamento de sua própria vida e também do Universo. Conforme a doutrina egípcia, "adquirir o poder sobre sua própria Alma, para que Osíris ceda a possibilidade da reencarnação". Um dos maiores equívocos em relação ao tarô é vê-lo como algo que irá adivinhar o futuro, fornecendo respostas e receitas prontas. Acredito que seja mais adequado considerá-lo uma interessante ferramenta de autoconhecimento e de percepção da realidade.
O tarô e suas origens estão envoltos em muitos mistérios e especulações.  Sabe-se que o jogo de baralho tem suas origens na China e na Índia, tendo sido levado para a Europa pelos ciganos. A história documentada possui registros das cartas do baralho a partir de 1379 na Bélgica e, Espanha e Itáli pelos idos de 1545. Mas em se tratando do tarô, há uma crença de que suas origens remontam do "livro de Thot", deus egípcio da sabedoria e do verdadeiro conhecimento. Esse livro possuiria 78 "lâminas" impressas em ouro (78 arcanos do tarô). Thot (10.000 a.C) é uma personagem misteriosa e enigmática, onde muitos acreditavam ser um sacerdote atlante. O médico francês Gerard Encause (1865-1960) foi um conhecido ocultista que desenvolveu a teoria de que os egípcios já sabiam sobre o difícil período de guerras e invasões que poriam em risco o conhecimento adquirido. Dessa forma, Thot encomendou aos seus sacerdotes para que desenvolvessem uma forma de proteger o conhecimento. Foram-lhe dadas e aceitas duas sugestões: a impressão do conhecimento nas paredes das pirâmides (o império faraônico estava estruturado na base de símbolos) e, o desenvolvimento de um "jogo", contendo 78 cartas que expressavam todo o conhecimento Sabiam que as pirâmides poderiam ser destruídas pelo tempo ou por invasões. Mas o "jogo" perduraria porque desenvolveria o "vicio" e a compulsão de jogar.


Como é possível que cartas pegas aleatoriamente possam ter alguma importância na vida de alguém? A psicologia possui duas teorias que contribuem para essa compreensão: A "sincronicidade" de Jung e a "projeção" descrita pela psicanálise. Jung acreditava que além das freqüentes relações de causa e efeito, nas quais o mundo científico se baseia, há também um outro princípio de ligação que não compartilha essa relação. Ele chamou esse princípio de "sincronicidade". Para sua teoria, tudo no universo está interligado por um tipo de vibração, e que duas dimensões (física e não física) estão em algum tipo de sincronia, que faz certos eventos isolados parecerem repetidos, em perspectivas diferentes. Tal idéia desenvolveu-se primeiramente em conversas com Albert Einstein, quando ele estava começando a desenvolver a Teoria da Relatividade. Einstein levou a idéia adiante no campo físico, e Jung, no psíquico. Dessa forma não podemos descrever com certeza absoluta, qualquer relação de "causa e efeito" em algum evento isolado, fornecendo uma resposta lógica e pronta. Mas podemos observar fatos que poderíamos ver apenas como "coincidência" e que na verdade são sinais que podem nos ajudar a tomar decisões e a orientar nossa vida (se os reconhecermos). Diante desse princípio de que "tudo está interligado através de vibrações", cartas pegas aleatoriamente, na verdade são "as cartas que de alguma maneira estamos "precisando ver".
A "projeção" é uma velha aliada da psicoterapia. Quando olhamos o mundo externo, olhamos com os nossos olhos e "projetamos" o conteúdo de nosso subconsciente naquilo que está sendo visto. Em outras palavras, vemos aquilo que queremos ver! Esse tornou-se um vasto campo científico na produção de "testes projetivos", muito úteis na formação de diagnósticos. Um bom exemplo é o teste do borrão de tinta de Rorschach. O teste de Rorschach é uma técnica de avaliação psicológica pictórica, comumente denominada de "teste projetivo", ou mais recentemente de método de auto-expressão. Foi desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. O teste consiste em dar respostas sobre com o que se parecem as dez pranchas com manchas de tinta simétricas. A partir das respostas, procura-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo. É amplamente utilizado em vários países, sendo muito utilizado por peritos criminais na avaliação de personalidades pisicopáticas. Diante desse princípio, ao "olharmos para o tarô", estaremos sempre vendo aquilo que precisamos e ver.
Finalmente, o tarô é um jogo e um procedimento lúdico (http://manoel-psicogrupos.blogspot.com/2011/07/o-jogo-e-brincadeira-na-educacao-e-na.html) que certamente pode nos auxiliar a trilhar nosso "caminho do rei".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Crença, contradições e crise


Há um valor inestimável nos significados e crenças que construímos e mantemos para poder interpretar a realidade e viver. Quando uma crença contradiz outra ou parece incompatível com outra, ou quando aquilo em que sempre acreditamos é contrariado por uma outra forma de conhecimento, entramos em crise e num profundo desconforto. Esse "desconforto" é chamado pela psicologia social de dissonância cognitiva, levando as pessoas a buscarem elementos de consonância, que são a mudança de uma das crenças ou das duas, para torná-las mais compatíveis e menos conflituosas. O resultado esperado é o encontro de uma saída que possa aplacar esse desconforto, trazendo de volta a harmonia de pensamentos e idéias. Essa harmonia traz algo mais do que "conforto": traz esperança e confiança para enfrentarmos as dificuldades que temos que passar pela vida.
Pois bem, existem algumas questões da nossa vida que possuem uma natureza terrivelmente desconhecida e desafiadora e, por essa razão, sua interpretação e elaboração se tornam muito difícil e muito dolorosa: a doença e a morte.
Tanto a doença como a morte podem atingir pessoas independentemente de status social, raça, credo, idade e poder econômico. Qualquer um pode ser vítima, a qualquer momento! Esse é o caráter mais assustador por ser um evento que não pode ser controlado ou manipulado. Entender, significar e dar sentido para a morte e para a doença tem sido uma necessidade e um desafio do homem através dos tempos. Não é possível descrever a morte! Não temos palavras e se torna difícil simbolizá-la,  classificá-la na rede de pensamentos e idéias e, por fim, aceitá-la. Para essa difícil tarefa somos obrigados a recorrer às nossas fantasias. religiões e crenças, como uma tentativa de fornecer algum esboço de explicação para algo que foge totalmente ao nosso controle. Algumas vezes a morte do "outro" é tida como certa, podendo ser razoavelmente identificada pelas condições em que  o "outro" se encontra (pacientes terminais ou muito velhos ou severamente doentes, etc). Outras vezes a morte do "outro" surge como uma possibilidade iminente e uma ameaça indesejada, através de um diagnóstico ruim ou de uma situação de grande apreensão. Nesses casos o sofrimento para a busca de explicações plausíveis, tanto da pessoa que é vítima de uma doença grave, como das pessoas mais próximas em sua volta, é muito grande. O caminho mais fácil é buscarmos respostas em fantasias e crenças, que normalmente buscam "adivinhar" o futuro, como forma de antecipação de uma angústia para uma possível perda. "Antecipar" surge com a falsa idéia de explicação e proteção contra um desfecho inesperado. Quando antecipamos a angústia da perda, começamos a tratar uma dor que ainda não existe, mas que poderá vir a existir e nos fazer sofrer. Talvez seja mais importante viver intensamente o momento, estando "ao lado" daquele que necessita de ajuda, de forma acolhedora, prestativa e realista. Viver um dia de cada vez e enxergar a realidade como ela é, ajuda na realização de "pequenas conquistas" que podem fazer a diferença e trazer esperança. O sentimento de esperança é suave, revigorador e nos proporciona prestar atenção e aprender com a realidade do momento, independente de qualquer que seja o desfecho. A morte continua sendo um mistério e, salvo algumas raríssimas exceções, não pode ser prevista e nem premeditada por ninguém. Perder tempo com isso pode nos tirar energias e do foco daquilo que realmente precisa da nossa atenção.  

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Tornar "familiar" o "não familiar" - Uma necessidade

Desde sempre as pessoas precisam dar significado e sentido para as coisas. Essa é uma característica histórica da espécie humana e é o que se entende por "cognição" (Aurélio: Aquisição de conhecimento - O conjunto dos processos mentais. no pensamento, na percepção, na classificação, reconhecimento, etc..). Quando um assunto é totalmente desconhecido e impossível de ser decifrado e significado, causa mal-estar e desconforto. Um desconforto que permanece até que uma maneira qualquer de elucidação e esclarecimento ocorra, transformando o "mal-estar" em "alívio". Quando a AIDS surgiu na década de 80, as pessoas ficaram perplexas e imobilizadas diante de uma epidemia que estava matando muito. Não era possível explicar, entender e classificar o que estava ocorrendo. A solução do senso comum foi classificar a AIDS como uma "peste gay", mesmo que sendo de uma forma equivocada e preconceituosa. A partir dai a nova doença pareceu ao senso comum menos ameaçadora, já que "só aconteceria" com os gays"...
Essa mesma necessidade também está presente nas questões cotidianas: alguém ouve um barulho estranho na madrugada, impossível de ser decifrado - a explicação para o fato pode variar desde qualquer fenômeno acústico, ou a presença de gente estranha na casa ou, até mesmo a "constatação" de que o local esteja mal-assombrado, caso não surja nenhuma outra explicação plausível. Não importa qual seja a explicação, o que mais importa é necessidade imperiosa de "alguma explicação". Não nos é possível viver com o "desconforto" e a "angústia" da ausência de explicação.
A necessidade de "entender", "conhecer" e "classificar" é tão imperiosa e importante para o psiquismo, que podemos adoecer gravemente quando não "digerimos" questões importantes e relevantes da vida. Até mesmo a capacidade de "perdoar" está atrelada a capacidade de "entender". Só perdoamos verdadeiramente quando realmente "entendemos", a nossa maneira, o que ocorreu. Esse pode ser um processo de minutos, horas, dias, alguns anos ou a vida toda.


Compreender a realidade é tão importante, que até mesmo na relação saúde-doença, a capacidade de "entender o que se passa comigo", pode garantir a adesão do paciente ao tratamento. Não seria exagero dizer que a melhora ou cura desse paciente, também esteja atrelada a compreensão do "que se passa comigo". Nos atendimentos de grupos de terapia é comum que algumas pessoas não consigam verbalizar e explicar suas queixas e angústias. Quando ouvem de outras pessoas relatos que trazem semelhanças com seus sintomas,  identificam-se e sentem-se aliviados e compreendidos: "Estou feliz porque agora já sei o que tenho..."; "Depois de ver tanto sofrimento, comecei a achar que o que tenho não é nada...", etc. O problema é que isso nem sempre ocorre! É muito comum dizer a um paciente que ele precisa emagrecer ou parar de fumar ou parar de beber para que possa se curar ou ter uma melhor qualidade de vida. E também é muito comum se verificar que esse paciente, mesmo com medo de morrer, não cumpra essas determinações.
Sabemos que consultas médicas oferecidas pelo SUS não costumam demorar mais que 15 minutos. Não há tempo suficiente e nem interesse em se conhecer a história do paciente. Tratamentos psicológicos profundos normalmente são descartados pelo SUS e pelos convênios médicos. Só podem ocorrer com um número limitado de sessões, em casos de solicitação médica específica. E mais uma infinidade de limitações que envolvem outras importantes e fundamentais áreas da saúde, como: fisioterapia, odontologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc.
Ouvir e compartilhar permite a compreensão e a disseminação do conhecimento. Quando compreendemos o que se passa, ocorre uma interligação entre cognição, afeto e ação. Mudamos o que precisa ser mudado, de forma consensual e segura. Em outras palavras, aquilo que não era familiar e causava angústia e sofrimento, agora é familiar e conhecido, causando mudança e comprometimento.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Os três impostores

Três impostores se apresentaram à corte solicitando uma audiência com o rei, que lhes foi concedida.Uma vez na presença do soberano, comunicaram-lhe que eram tecelões e que possuíam um segredo de fabricação: o segredo que tinha a propriedade única de não ser visível, a não ser para quem fosse filho legítimo.
O rei já tivera que resolver muitos conflitos bem complicados de heranças, e viu naquela invenção muito útil o meio de frustrar falsos pretendentes, já que só os filhos verdadeiros poderiam ver o tecido.
Ordenou imediatamente que um palácio fosse posto a disposição dos inventores, a fim de que o segredo fosse preservado.
Convencido da honestidade deles, o rei cobriu os três cúmplices maldosos de ouro, prata e jóias.
Eles se fecharam no palácio e simularam, noite e dia, grande atividade. Algumas semanas mais tarde, um deles foi informar ao rei dos excelentes resultados do seu trabalho, e pediu-lhe que fosse constatá-los. Seria preferível que o rei fosse sozinho.
O rei achou que seria prudente uma outra opinião sobre um tecido  dotado de tais poderes, e mandou seu conselheiro. O conselheiro foi visitar os três impostores para examinar o tecido de propriedades mágicas, mas não conseguiu ver nada. Como não queria admitir que parea ele o tecido era invisível, voltou a presença do rei e elogiou a maravilha que havia visto. O rei mandou outras pessoas, que voltaram com a mesma resposta.
Decidiu então ir pessoalmente. Os três impostores lhe descreveram a excelência de sua invenção, a variedade das cores e o desenho original.
O rei se mantinha em silêncio, inclinando levemente a cabeça em sinal de aprovação. Na realidade, porém, não via absolutamente nada.
Começou então a ficar embaraçado.
"será que não sou o verdadeiro filho do rei meu pai?", pensava. "Se não vejo nada, arrisco-me a perder meu trono."
Começou também a expressar sua admiração, repassando com muitos elogios todos os detalhes que acabava de escutar.
De volta ao palácio, continuou a fazer comentários sobre o tecido, como se o tivesse visto.
Entretanto uma dúvida o atormentava.
Alguns dias mais tarde mandou seu ministro ver o tecido. Os três impostores fizeram uma descrição, mas ele não via nada.
Naturalmente o infeliz ministro imaginou que não era filho legítimo de seu pai; a única razão pela qual não via o tecido.
Sabendo que se arriscava a perder sua importante posição, limitou-se aos termos que tinha ouvido da boca do rei e de seu conselheiro.
Foi ao encontro do rei e lhe disse que tinha visto o tecido mais extraordinário do mundo.
O rei ficou profundamente perturbado. Não havia mais nenhuma dúvida, ele não era filho legítimo de seu pai. Mas se juntou ao ministro em exclamações sobre o valor dos três tecelões.
Todos quiseram visitá-los, e todos voltaram com as mesmas impressões.
A história continuou assim até que informaram ao rei que a tecedura havia terminado.
Este ordenou que se preparasse uma grande festa, na qual todos usariam roupas confeccionadas com o tecido maravilhoso.
Os três impostores se apresentaram com diferentes padrões, que desenrolaram por metros e metros de extensão, e a confecção do traje real foi decidida.
O dia da festa chegou. Os trajes estavam prontos. O rei foi inteiramente vestido pelos três espertos. Entretanto ele não via nem sentia nada. Uma vez terminado o trabalho, o rei montou seu cavalo e rumou em direção à cidade.
Felizmente era pleno verão.
A multidão viu o rei e sua corte passarem e ficou muito surpresa com o espetáculo. Mas o rumor de que só os filhos legítimos podiam ver as suas roupas circulava, e todos guardavam suas impressões para si.
Todos, exceto um estrangeiro, de passagem pela cidade, se aproximou do rei e lhe disse:
- Senhor, pouco me importa saber de quem sou filho. Por isso posso lhe dizer que, na realidade, o senhor está nu.
Furioso o rei bateu no estrangeiro com seu chicote e lhe disse:
- O fato de não ver meus trajes prova que você não é um filho legítimo!
Mas o encanto estava quebrado, assim como o silêncio e o medo. Todos viram que o estrangeiro tinha dito a verdade e repetiram a mesma coisa, cada vez mais alto. Risos se elevaram.
Então o rei e sua corte se deram conta de como tinham sido habilmente enganados.
Mas os três impostores já estavam longe, com o ouro, a prata e as jóias...

("Os três impostores" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 78.)



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O apetite das crianças

Em uma conversa informal com um amigo esclarecido (aquelas de cafezinho, de 5 minutos), reaprendi "verdadeiramente" alguns conceitos que já conhecia, mas não me lembrava mais. Falávamos sobre a terrível dificuldade e preocupação que muitos pais enfrentam na hora das refeições de suas crianças, em especial as crianças que se recusam sistematicamente a comer. Como pai posso dizer o quanto é desesperador  ver sua criança negar e recusar qualquer refeição. Seja uma bela e saborosa sopa contendo todos os nutrientes recomendados pela pediatra, ou um mingau docinho, ou até mesmo uma sobremesa. Também existem casos de mães desesperadas que não sabem mais o que fazer para evitar que seus filhos comam excessivamente, vendo-se obrigadas em muitas situações, a esconder comida em armários. Neste último caso, costuma demorar mais tempo para os pais perceberem que algo está errado. Penso que essa demora ocorra em função de ser muito prazeroso ver seu bebê e depois sua criança muito pequena comendo "muito bem" (essa expressão é relativa!). Somente depois de um bom tempo, quando a criança já está muito acima do peso e em alguns casos encontra dificuldades para brincar e se relacionar, é que os pais passam a perceber que algo precisa ser feito. 

Voltando a conversa que tive com meu amigo, o que ouvi dele foi muito simples e muito assertivo: "É preciso separar o que é da criança e o que é dos pais e, ao mesmo tempo, bloquear as ações que correspondam somente, as necessidades emocionais dos pais". Em outras palavras: Se a criança está sem apetite e deseja comer pouco ou quase nada, isso precisa ser percebido e respeitado. A insistência para que a criança coma é uma necessidade inconsciente do adulto e de sua história, não da criança. Por mais estranho que possa parecer, o corpo de crianças saudáveis, física e mentalmente, sabe de quanto alimento necessita. Pesquisei esse assunto num livro muito interessante ("Filhos: Manual de Instruções" de Tania Zagury) que quero reproduzir e compartilhar um pequeno trecho aqui: "Criança (sadia) que não come bem é: a) A que tem pais que acham que ela não come bem; b) A que vive com pessoas que ignoram que não há registro na literatura científica de crianças que morreram de fome - tendo comida ao seu alcance; c) Aquela que descobriu que comer ou não comer é arma valiosa e poderoso instrumento de troca; d) Aquela cujos pais se desesperam quando ela diz "não quero comer", alimentando assim um ciclo vicioso de ansiedade e luta de poder.  Criança (sadia) que come bem é aquela: a) Cujos pais não fazem aviãozinho, "senão ela não come"...; b) Cujos pais não andam atrás dela pela casa, desesperados, com um prato de comida numa das mãos e a colher na outra, esperando um momento de distração, para lhe enfiar uma colheradinha a mais goela abaixo; c) Que, simplesmente senta à mesa e come; d) Que não está acima do peso". É muito importante frisar que essas recomendações são feitas para crianças saudáveis!

Alimentar os filhos está intimamente associado com "cuidar" que pode ser traduzido como uma "prova de amor" dada pelos pais, especialmente pelas mães, que são as responsáveis diretas pela amamentação. Hoje em dia, homens e mulheres são responsáveis pela manutenção da casa. De acordo com índices do IBGE, 44% da força de trabalho brasileira é composta por mulheres. Por precisarem trabalhar para ganhar o sustento, as crianças são encaminhadas desde muito cedo para a pré-escola, ou para os cuidados de uma babá. Um excelente mecanismo inconsciente de compensação por parte dos pais pode estar associado com os cuidados excessivos com a alimentação dos filhos. A falta da percepção e observação das fronteiras que separam as questões do adulto, com as reais necessidades da criança, pode vir a favorecer o reforço exacerbado de um vínculo indesejado: o apetite (ou a falta de...), com a defesa contra a ansiedade, muito presente no processo de desenvolvimento emocional da criança. A psicanálise e a psicologia fazem uma associação dos distúrbios do apetite com dificuldades emocionais e doenças psiquiátricas. A criança sem apetite está com sua voracidade inibida, provavelmente por não confiar no alimento que está recebendo. Seu desejo é colocá-lo para fora de seu corpo. Outros sintomas que costumam estar associados com a inibição da voracidade: falta de apetite crônica, nervosismo excessivo e pesadelos frequentes, Ao perceber que algo está errado cabe ao adulto bloquear as ações inconvenientes resultantes de sua angústia e, ajudar a criança a reconstruir essa confiança com: liberdade, regras, rotinas saudáveis, respeito e amor. De outra forma sua contribuição será com a intensificação da ansiedade.
Obrigado meu amigo esclarecido!

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O jogo e a brincadeira na educação e na psicoterapia

Um assunto intrigante é a reconhecida capacidade que os jogos e as brincadeiras possuem em ajudar o homem a interpretar e significar a realidade a sua volta. A fase pré-escolar da "aprendizagem" já foi amplamente associada com jogos e brincadeiras, tanto pela pedagogia como pela psicologia do desenvolvimento.  Mais do que "descarregar energias", os brinquedos e as brincadeiras facilitam para que a criança pense sobre suas experiências emocionais e  possa reconhecer seu potencial. O mesmo ocorre com pessoas adultas que, não raro, conseguem ultrapassar dificuldades emocionais muito sérias em suas vidas, em sessões de psicoterapia em que o lúdico é utilizado como ferramenta. Diante de dificuldades e situações inusitadas, a atividade lúdica costuma ser um caminho que conduz para ações espontâneas e criativas.  Já disse em outras oportunidades que a espontaneidade e a criatividade são as verdadeiras formas que dispomos para fornecer respostas novas, para questões antigas. Alguns autores como Karl Groos (1940), chegam a esboçar teorias de que os inventos primitivos, como por exemplo, o domínio do fogo, provavelmente surgiram através do envolvimento lúdico com as coisas. Winnicott (1975) menciona que: "... é no brincar que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral." 
Na psicoterapia individual ou de grupo, o psicodrama é uma abordagem que utiliza o jogo e o brinquedo como um princípio de autotratamento. J.L. Moreno (o criador do psicodrama) já dizia que "a brincadeira sempre existiu, e é mais velha que a humanidade..." (Psicodrama e Psicoterapia de Grupo, p. 110). Foi através do "princípio do jogo" que as fundações do psicodrama se originaram, quando Moreno passou a brincar com crianças nas ruas e jardins de Viena. Desde então o psicodrama transformou o jogo em um princípio metódico e sistemático. Arrisco dizer que, por sua ação lúdica e criativa, o jogo produziu novas e criativas idéias que levaram Moreno ao "teatro de improvisação" e, mais tarde, ao teatro terapêutico.

Pensadores como Pestalozzi, Froebel e Rousseau produziram idéias e conceitos que demonstram, do ponto de vista filosófico, o valor educacional da brincadeira e do jogo. Froebel em especial, sistematizou conceitos que influenciaram e influenciam até hoje a pedagogia e a psicologia do desenvolvimento. Friedrich Froebel (1782 - 1852) foi um pensador alemão que viveu sob a influência libertadora do iluminismo e produziu uma pedagogia que procurava explicar o desenvolvimento humano. Frobel foi o criador do "Jardim de Infância", uma idéia que foi muito revolucionária em sua época, embora tenha morrido sem poder ver sua criação em pleno funcionamento. Em seu livro "A educação do homem", dá ênfase ao desenvolvimento infantil afirmando que Deus é o princípio de todas as coisas e que a vida do homem deve harmonizar-se com a sua divindade e a de todas as outras criações divinas. Procurando cultivar e descobrir dentro de si mesmo a sua própria essência divina, o homem será capaz de exteriorizá-la através de suas próprias criações. Para Frobel, o caminho para essa procura interna está na harmonização com a natureza, como sendo a maior criação divina. A essência de seu pensamento foi sistematizada através de um triângulo que representava a "unidade vital" do homem: Deus, natureza e homem. Através dos processos de "interiorização" (recebimento de estímulos e conhecimentos do mundo exterior) e "exteriorização" (respostas dadas pela criança que expressam a transformação daquilo que recebeu do mundo exterior, por seu conteúdo singular e sagrado), que surgirá a autoconsciência de seu ser e a educação.
Os processos de "interiorização" e "exteriorização" precisam de ação para mediá-los, necessitam de vida e atividade, não de palavras e nem de conceitos. A arte e o jogo são as melhores ferramentas.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A água do paraíso

Harith, o Beduíno, e sua esposa, Nafisa, indo de um lugar para o outro, erguiam sua tenda esfarrapada onde quer que encontrassem tamareiras, ervas para alimentar seu camelo ou um poço de água salobra. Esta vinha sendo sua forma de vida por muitos anos e Harith raramente variava sua rotina diária: caçando ratos para aproveitar-lhes a pele, trançando cordas de fibras de palma que vendia aos caravaneiros que por ali passavam.
Um dia contudo surgiu um novo manancial no areal e Harith levou um pouco daquela água aos lábios. Teve a impressão de estar provando a verdadeira água do paraíso, pois era muito menos suja do que aquela que estava acostumado a beber. A outros teria parecido desagradavelmente salgada.

- Devo levar isto à alguém que irá apreciá-lo - disse Harith.

E foi assim que partiu rumo a Bagdá, em busca do palácio de Harun el-Raschid, viajando sem deter-se a não ser para mastigar algumas tâmaras. Harith levou consigo dois odres de couro cheios daquela água: um para ele e outro para o califa.

Dias depois chegou a Bagdá e se dirigiu logo ao palácio. Ali os guardas ouviram sua história e, somente por ser esta a norma usual, deixaram-no participar da audiência pública de Harun el-Raschid.

- Comendador dos crentes - disse então Harith, - eu sou um pobre beduíno e conheço todas as águas do deserto, embora saiba pouco acerca de outras coisas. Acabo de descobrir a água do paraíso e, julgando-a uma oferenda digna de vós, vim logo oferecê-la.

Harun, o íntegro, provou da água e, como compreendia seu povo, ordenou aos guardas palacianos que levassem Harith e o mantivessem detido por algum tempo, até tornar conhecida sua decisão sobre aquele caso. Depois chamou o capitão da guarda e lhe disse:

- O que para nós não é nada, para ele é tudo. Potanto devem levá-lo deste palácio durante a noite. Não deixem que veja o poderoso Tigre. Escoltem-no até sua tenda no deserto, sem permitir que prove água doce. Então dêem mil moedas de ouro a ele, juntamente com meus agradecimentos por seu serviço. Digam-lhe que é o guardião da água do paraíso e que distribua gratuitamente, em meu nome, a todos os viajantes.

("A Água do paraíso" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 104.)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Bem e mal - Compartilhar e educar

O ensino da religião e de um bom senso de valores para os filhos, está condicionado ao desenvolvimento interno da criança e ao compartilhamento dos valores sociais desejados pelos pais. A imposição de idéias e princípios, gera um esquema artificial que não refletirá na essência da criança, pelo simples fato dela não ter participado da construção desse esquema e, consequentemente não ter realizado sua própria elaboração. A educação tradicional como um todo, mas em especial a educação moral, parte do princípio que a criança é um recipiente vazio, que precisa ser preenchido com boas coisas por seus pais. Jà a educação compartilhada leva em conta os aspectos do ambiente, mas também os aspectos que são próprios da criança. Quando pensamos em desenvolvimento, pensamos em um ambiente suficientemente bom, que facilite o desenvolvimento. Mas não se pode esquecer que também há o potencial herdado pela criança, que é somente da criança e não do ambiente. Basta darmos o exemplo de irmãos que são totalmente diferentes, embora tenham os mesmos pais e vivam no mesmo local
Pois bem, a educação moral não funciona se a criança não tiver desenvolvido dentro de si própria, por um processo natural de desenvolvimento, a essência daquilo do que se quer passar para ela. A idéia de um Deus só será absorvida, se o desenvolvimento da criança a tiver preparado para possuir dentro dela mesma, a essência do significado do que é Deus: o Deus desejado pelos pais, que está vinculado a fatores sócio-culturais e, o Deus que será construído e elaborado pela própria criança. Trata-se de um caminho de mão-dupla. Há pais e educadores que tem medo de aguardar e observar os processos da própria criança, preferindo incutir e impor rapidamente suas idéias. Também há os que aguardam e se preparam para apresentar as idéias e expectativas que a criança poderá utilizar, à medida que chega a cada novo estágio de integração e capacidade de consideração objetiva.

O ensino tradicional das religiões fez muito pelo pecado original, mas não se aproximou nem um pouco, da idéia da bondade espontânea e original. Um Deus que esteja fora do homem, é um Deus imposto por idéias e valores que não foram desenvolvidos e elaborados dentro do próprio homem. Winnicott mencionou que a idéia de se criar e recriar um Deus, pode ser comparada a um local que o homem procura para colocar o que é bom nele mesmo, e que poderia estragar se o mantivesse nele próprio, junto com o ódio e com a destrutividade, que também se acham nele.
A humanização da criança é responsabilidade de seus pais e educadores. O ambiente deve deixar sempre ao alcance da criança, um código moral adulto, uma vez que o código moral inato da criança pequena tenha uma característica ferrenha, crua e incapacitante. Nesse sentido os valores morais do adulto atuarão como agentes humanizadores e tranquilizadores. A boa tradução desse conceito é a definição clara de limites. Pode-se dar o exemplo de crianças muito pequenas que mordem outras crianças, mesmo que gostem muito delas. Nesse exemplo a criança sente vontade de morder a outra criança por um estado de muita excitação, não por ódio ou medo. Para refrescar a memória dos adultos em relação a esse tipo de excitação: quem nunca sentiu vontade de "apertar" ou "morder" uma criança muito bonitinha, ou um filhotinho de gato ou cachorro, muito encantadores? A definição clara de limites ajudará a conter esse impulso. O desenvolvimento em seu curso normal, auxiliado pelo compartilhamento dessas impressões com o ambiente, ajudarão com a elaboração.
A cada etapa a criança poderá realizar conquistas verdadeiramente pessoais, que a aconpanharão pelo resto de sua vida. Em se tratando de viver, o exemplo dado e compartilhado, é a mais poderosa ferramente de educação.

sábado, 28 de maio de 2011

Ser ou não-ser - A natureza humana

Sentir-se vazio e sem orientação interna causa desespero e desesperança. Quase sempre estes sentimentos estão associados com uma percepção inadequada do indivíduo, de si mesmo e do mundo que o cerca: oportunidades que não são enxergadas, equívocos na interpretação e condução de problemas, sentimento de incapacidade para se tomar decisões, etc. Uma vez  sentindo-se "perdido" (não-sendo), o indivídiduo sente-se ansioso e se paralisa. O mundo apresenta caminhos e soluções que não podem ser enxergados e incorporados, dando a falsa sensação de que: "nada mais é possível" ou, "não tem mais jeito..." Em muitos casos, a ansiedade pode tornar-se depressão, agravando a desesperança e o sofrimento psíquico.
No entanto, a capacidade do indivíduo em perceber adequadamente o mundo que o cerca, está diretamente associado com a capacidade que o sujeito tem em perceber-se internamente (ser), como pessoa e como indivíduo. Essa combinação entre o mundo interno da pessoa, com o mundo externo que a cerca, pode de certa forma ser chamado de personalidade. Mas a combinação entre o "si mesmo" e as relações sociais, é naturalmente uma fonte interminável de tensões psíquicas, que se acumulam e precisam ser descarregadas.
Quando o alívio dessas tensões não ocorre, adoecemos angustiados. Conhecer a "si-mesmo" implica em se reconhecer os próprios limites e possibilidades, a vocação e o sentido da própria vida. O "si-mesmo" quando percebido e reconhecido, pode funcionar como uma bússola interna diante das situações imprevistas e inesperadas que a vida apresenta de tempos em tempos. Winnicott chamava o "si-mesmo" autêntico de "self verdadeiro" que é a instância psíquica central controlada pelos instintos. Sua função está centrada na satisfação dos instintos mais profundos do si-mesmo, que constituem os desejos mais autênticos do sujeito.

Ocorre que esses desejos nem sempre podem se manifestar livremente e de forma adequada, sem antes serem transformados e reelaborados. Para lidar com o mundo externo e suas exigências e, ao mesmo tempo não expor o "self verdadeiro" e seus desejos mais profundos, uma outra parte do "si-mesmo" passa a atuar. Essa instância é chamada de "falso self" (não-ser), que está relacionado basicamente com a sobrevivência social e com o sentimento de aceitação. O "falso self" é constituído na base da submissão às necessidades externas e sociais da pessoa. A pessoa se submete para sentir-se aceita pelas outras pessoas, embora internamente sua essência se manifeste de forma diferente do que é esperado pelo mundo externo. Para manter a saúde e a integridade do indivíduo, o "self verdadeiro" não pode jamais, se submeter às exigências externas. Primeiro ele precisa compreendê-las e reelaborá-las internamente, se adaptando às novas situações Por essa razão, entre outras coisas o "falso self" tem a função de proteger o "sel verdadeiro", não o expondo até que consiga se adaptar, para em seguida, se manifestar. Adaptar-se significa reconhecer, reelaborar e transformar conteúdos internos que, em dado momento são inadequados e indesejados pelo mundo externo (relações sociais). Com aproteção do "falso self", o "self verdadeiro" ganha um tempo para se transformar e adaptar-se, aumentando o repertório da pessoa e sua capacidade em lidar com os conflitos da vida. Por essa razão esses conteúdos não podem se manifestar antes de serem reelaborados. Neste processo, a capacidade do sujeito em suportar o sentimento de inadequação causado pelas imposições externas, é o que é considerado como "amadurecimento emocional".
O problema está quando o "falso self" se sobrepõe de maneira permanente ao "self verdadeiro". Sem a bússola interna e sem contato com sua essência, a pessoa sente-se vazia e desorientada, sentimentos que contribuem muito para a cronificação dos sintomas de ansiedade, depressão e futilidade.

"Ser" ou "não-ser" são estados que se alternam no psiquismo humano, desde o nascimento até a morte. Sua fase mais determinante para a constituição da saúde mental do indivíduo, está no nascimento e nos primeiros anos de vida. Durante o desenvolvimento da personalidade há uma guerra constante enfrentada pela criança entre "ser" e "não-ser". Essa guerra complexa e quase indecifrável produz uma série de tensões internas, que são inerentes ao processo de amadurecimento emocional. Dependendo do momento, da intensidade, da facilitação do ambiente externo e da capacidade do próprio bebê em lidar com essas dificuldades, poderá produzir saúde ou doença, em vários graus e intensidades (como dito no texto anterior). Esses resultados irão produzir consequências profundas na saúde mental do futuro adulto. Entende-se por saúde mental o amadurecimento emocional. Como doença, entende-se a sua interrupção.
Diferentemente do adulto, a criança ainda não tem o "ego" suficientemente desenvolvido, que é a principal ferramenta para o alívio das tensões resultantes desse conflito. É por essa razão de que precisa fundamentalmente do "ego" de sua "mãe suficientemente boa" e, de um "ambiente suficientemente bom", que facilite e a ajude essa tarefa. O "ambiente suficientemente bom" tem como única e fundamental responsabilidade, ser o facilitador desse processo. No entanto, o ambiente bom não é uma garantia de que tudo poderá ocorrer adequadamente. O potencial interno da criança em "poder ser", também depende de uma conquista individual pela criança, que é naturalmente precária, podendo assim, não se realizar: "embora os pais procurem ensinar tudo aos seus filhos, a verdade é exatamente o oposto, pois não podemos nem mesmo ensiná-los a andar, embora sua tendência inata para andar em certa idade precise de nós como figuras de apoio" (1987b, p. 162).
Há uma variável imponderável que é o bebê e seus processos internos e individuais, que podem ser considerados como sendo um mistério. Winnicott citava que a vida humana tem uma precariedade essencial, e um caráter fundamentalmente não-controlável. O mesmo ocorre com o adulto: há pessoas que passam a vida inteira "não-sendo", embora todas as condições lhe tenham sido favoráveis.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O ambiente e a preservação da essência da personalidade

Dissemos até aqui que, de acordo com a definição de Jung o homem já nasce com o "self" que é o núcleo central da psique, o "centro fundamental cujo papel é o de ordenador de energias". Seu conteúdo é visto como um "potencial" a se desenvolver através da experiência vivida e pelo autoconhecimento. O "ego" na cocepção de Freud, é a unidade da consciência  que irá se desenvolver mais tarde, sendo a instância psíquica responsável pela memória, controle motor, percepção sensorial, sentimentos e pensamentos. Esses fatores biológicos irão influenciar o desenvolvimento do ego através do processo de maturação, tendo duas vertentes básicas: a) a experiência vivencial do sujeito e b) o ambiente e suas influências determinantes nos processos de amadurecimento biológico e emocional. Uma vez "pronto", o "ego" será a principal ferramenta que o sujeito irá utilizar para lidar com o mundo externo e promover o autoconhecimento.
Pois bem, todas as situações de conflitos enfrentadas pela criança em seus primeiros meses de vida, geradas pelo próprio nascimento e pelo processo de amadurecimento, produzem uma reação no bebê por meio de manifestações psicológicas e físicas, que são denominadas como "ansiedade". Freud acreditava que a ansiedade tinha uma base biológica herdada, ou seja, que o organismo humano é dotado naturalmente dessa "capacidade". Em suas observações e considerações, identificou essa "capacidade", como um valor de sobrevivência para o indivíduo, em seu estado "natural". Se um ser humano, sem a proteção de seus pais, não se atemorizasse por coisa alguma, seria logo aniquilado. Nomeou os conflitos inerentes ao amadurecimento e ao próprio nascimento, como sendo: "situações traumáticas" e "situações de perigo". Situações de perigo são diferentes de situações traumáticas: o perigo é percebido e temido e, de alguma maneira pode ser que seja contornado. O trauma acontece quando o perigo não pôde ser contornado e uma situação indesejável se estabeleceu. Quando uma situação traumática ocorre,  a psique é inundada por uma afluência enorme de estímulos, demasiado grande para que se possa "dominar" e "descarregar" (isso quer dizer: "controle, equilíbrio e alívio" sobre sensações ruins e indesejáveis).  Na teoria da ansiedade de Freud, o responsável pela "dominação" e "descarga" dos estímulos, é o "ego". Como o "ego" da criança em seus primeiros anos de vida é ainda relativamente débil e pouco desenvolvido, a criança irá precisar fundamentalmente do "ego" de sua mãe, para conseguir contornar o perigo e evitar a instalação do trauma.

É neste momento que considero a contribuição de D.W.Winnicott com a sua teoria do desenvolvimento emocional, como um avanço na compreensão do desenvolvimento do "self" e do "ego". Existem importantes e diferentes conceituações de "self" e de "ego", entre Jung, Freud e Winnicott.  Para Winnicott, embora muito frágil, o "ego" existe desde o início, em conjunto com o "id" (centro instintivo) e, o resultado de sua "integração" e amadurecimento, é o que pode ser denominado como "self". Essas diferenças conceituais não cabem serem discutidas aqui e, como pesquisador, considero mais importante buscar o encadeamento e pontos em comum, dessas várias idéias.
Para Winnicott, o ambiente humano é fundamentalmente o grande responsável por sua capacidade em facilitar ou não, o amadurecimento emocional e biológico da criança. Entenda-se como ambiente, todas as provisões "suficientemente boas", que facilitam ao bebê o seu progresso na jornada do desenvolvimento emocional. "Prover para a criança é por isso uma questão de prover o ambiente que facilite a sua saúde mental individual e o desenvolvimento emocional."  - "O ambiente e os Processos de Maturação" - pg 63 - Artmed Editora - Porto Alegre - 1983". Quando Winnicott fala em "provisão" adequada para a criança, inclui o conceito da "mãe suficientemente boa", cuja missão maior está em garantir a "provisão para a saúde": saúde mental e desenvolvimento emocional.
Quando a mãe não é "suficientemente boa", a criança não é capaz de começar a maturação do "ego", comprometendo o seu desenvolvimento que passa a ocorrer de forma distorcida e com problemas, em um momento de vital importância no processo de desenvolvimento. Aqui é muito importante frisar que não é adequado se pensar no bebê, apenas como uma pessoa que sente fome e outras necessidades básicas, que devem ser supridas. Mas sim, como um ser imaturo, que por sua total dependência da mãe e do ambiente, está continuamente a pique de sofrer uma ansiedade inimaginável. É muito importante se ressaltar que quando Winnicott fala sobre falhas no desenvolvimento emocional, não está se referindo e nem contemplando as doenças mentais primárias (aquelas decorrentes de problemas neurofisiológicos: paralisia cerebral, cérebro arterioesclerótico, etc).
De uma forma geral e natural, a ansiedade surge como um mecanismo de defesa, que dependendo da intensidade e do grau de desenvolvimento emocional em que a criança se situa, acarretará em consequências que são classificadas em dois grupos: a) ansiedade de castração - psiconeuroses; e b) ansiedade de aniquilamento, ou ansiedade inimaginável - psicose.

Na ansiedade de castração ou psiconeuroses, a psicanálise considera que a criança tenha atingido um certo estágio de desenvolvimento emocional (genitalidade e complexo de édipo) que lhe permite organizar defesas contra a ansiedade. Essas são as chamadas doenças neuróticas e o grau da doença está relacionado com o seu grau de rigidez. Em outras palavras, esse é o estágio em que a criança já consegue organizar seus desejos amorosos e hostis, em relação aos seus pais. Em termos de desenvolvimento emocional, isso já é muita coisa e está implícito que a personalidade do indivíduo está intacta, ou em termos de desenvolvimento, que a personalidade foi construída e mantida e que a capacidade para se relacionar com o mundo está preservada. Por essa razão as neuroses estão relacionadas às pessoas ditas como "normais".
Quando ocorre ansiedade de aniquilamento e não a ansiedade de castração, ocorre uma inundação de impulsos e sentimentos que não podem ser controlados, organizados e descarregados pelo "ego" da criança, devido a sua imaturidade e incapcidade. Se o ambiente através do "ego auxiliar" da "mãe suficientemente boa", também não proporcionar ao bebê uma forma de organização e auxílio para que a descarga ocorra, a ansiedade inimaginável se estabelece.
A ansiedade inimaginável é descrita por Winnicott nas variedades: 1) Desintegração; 2) Cair para sempre; 3) Não ter conexão alguma com o corpo; e 4) Carecer de orientação. As falhas que podem gerar a ansiedade inimaginável, produzem uma reação demasiado forte na criança, que corta a continuidade existencial. Dependendo do tempo e da intesidade, a ausência de continuidade existencial torna-se um padrão de desfragmentação do ser. A esquizofrenia e a personalidade esquizoide possuem uma forte relação com essas falhas.
Esse complexo e dinâmico processo possue forças que se confrontam e operam dentro do "self", produzindo uma infinidade de tensões que irão produzir o amadurecimento. Em condições normais o "self" nunca deve ser submetido à realidade externa para manter sua integridade. Isso significa que em termos de saúde mental, o conteúdo maior, a essência do sujeito, deve se preservar e não sucumbir ao mundo externo. O "self", que expressa toda a potencialidade do indivíduo, nunca deve ser submisso às questões sociais, preservando e enriquecendo a personalidade, sendo sempre "verdadeiro". Somente o "self" verdadeiro pode se sentir real, preenchido e pleno. Para lidar com os aspectos externos e ser protegido, surge um "falso self", que se constroi na base da submissão. O "falso self" e sua função defensiva do "self verdadeiro" pode estar associado com o conceito de saúde mental, mas sua existência não pode se sobrepor ao verdadeiro "self". Quando o "falso self" é tratado como real, há um crescente sentimento de futilidade, vazio e desespero por parte do indivíduo. É a partir desse ponto que prossigo na próxima semana.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sentimento de vazio, inutilidade e desespero - Quem sou eu?

Sentir que a vida não tem muito sentido; trabalhar e cumprir os papéis sociais apenas como sentimento de obrigação; ter a sensação de vazio dentro do peito, de incompetência e inutilidade; correr o dia inteiro e mesmo assim ter a impressão de que não se produziu nada; não dormir por ficar ruminando problemas que parecem ser insolúveis; um forte sentimento de solidão e desespero. Tenho percebido que esses relatos tem sido cada vez mais frequentes e comuns, tanto nos atendimentos do consultório, como nos círculos de amizade mais próximos. Há o agravante da vida moderna que levamos, ter um incrível poder para reforçar e intensificar essas impressões ruins: estamos conectados "on line" 24 horas por dia, através do celular, do computador do trabalho e de casa, dos terminais bancários e da TV e do rádio que estão funcionando em qualquer hora e lugar. É um verdadeiro mar de estímulos e informações que transitam em uma velocidade impossível de ser acompanhada e apreendida, causando a sensação de que o tempo está mais curto e de que a pessoa é "impotente" em poder participar e atuar nesse dinâmico processo.
Essas e muitas outras queixas parecem ser derivadas de um mesmo tema: Quem sou eu? Qual o sentido da minha vida? Penso que não seja possível responder essas questões, sem o auxílio do pensamento filosófico. E por não ser filósofo e não ter o conhecimento adequado dessas ferramentas, obviamente não é essa a minha intenção. Mas pensando na contribuição que a clínica psicológica pode fornecer, a psicanálise e a psicoterapia possuem teorias e ferramentas que podem facilitar a compreensão desse complexo processo de desenvolvimento e construção da própria identidade e do sentido da vida, que é sempre individual. Trata-se do processo de amadurecimento emocional e de integração do ego que vou procurar descrever de maneira sintética e o mais clara possível. Pela extensão e profundidade desse tema, para mim é um grande desafio tentar escrever sobre esses conceitos num blog. O modo que escolhi foi escrever sobre o tema em três postagens, sendo essa a primeira.

O "conhecimento de si mesmo" se inicia no nascimento e é um complexo e profundo processo de maturação interna (emocional e biológica) e externa (o reconhecimento do outro e do mundo externo). Está relacionado com as fases que o bebê e a criança precisam passar, até chegar a sua vida adulta. O corpo e as impressões e percepções da criança vão se modificando com o tempo, na medida em que cresce e matura. Os problemas e interrupções que podem ocorrer nessas fases, possuem uma enorme responsabilidade nos mais diversos sintomas de desconforto e sofrimento, que o adulto irá sentir e passar. Trata-se das chamadas "doenças mentais". É evidente que esses "distúrbios" existem em inúmeros graus, durações e intensidades, e são percebidos de formas diferentes, de indivíduo para indivíduo. A psicanálise contribuiu muito para a classificação desses "distúrbios" (uso esse termo embora não goste dele, porque são chamados e estão classificados assim pela psiquiatria), dividindo-os em três grupos básicos: a) Neuroses - relacionadas aos sujeitos considerados "normais"; b) Psicoses - relacionadas aos sujeitos considerados "anormais"; e c) Personalidade borderline - dirtúrbios que ocorrem em sujeitos que estão situados entre a neurose e psicose.

O termo "si mesmo" é chamado pela psicanálise e psicologia como "self". O "ego" é um outro termo, bem mais conhecido e muito utilizado no senso comum, mas que tem um significado diferente de "self". Foi introduzido por Freud para se referir a instância psíquica que se distingue do" id" (polo pulsional da personalidade, centro dos instintos) e do "superego" (instância da personalidade que faz o papel de censor e juiz). O conceito de self não é novo e aparece não só nas diversas escolas da psicologia,desde o século XIX), mas também em vários sistemas filosóficos e religiosos, muito mais antigos. Considero em especial a definição de "self" por Carl G.Jung, por me identificar muito com suas idéias: “O Si-mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade". (Encontri um link muito bom na internet, que compartilho aqui: http://cadernoaquariano.blogspot.com/2007/07/conceito-de-self-para-carl-g-jung.html). A "mandala" foi adotada por Jung para representar o "self", por seu significado de "totalidade psíquica", dado pela cultura oriental. Isso significa que quando nascemos, já nascemos com o "self". e todo o seu potencial, à se desenvolver. A ciência usa a expressão "potencial herdado"; a religião utiliza a expressão "alma"; a teologia e o esoterismo utilizam a expressão "eu superior" ou "eu divino". O que importa nessa questão é que parece que todas as diferentes áreas que buscam essas respostas, reconhecem que existe algo que já nasce conosco, seja "potencial herdado", seja "alma", seja "eu divino".
Diferentemente do "self", o "ego" é a instância da consciência que ainda irá se desenvolver, passando a ser o responsável pelo processo de amadurecimento, que intercambiará as relações com o ambiente e com a experiência propriamente dita. Suas funções psíquicas básicas deverão dar conta: do controle motor, da percepção sensorial, da memória, dos sentimentos, dos pensamentos. Essas serão as ferramentas fundamentais para que o bebê possa perceber a "si mesmo" (os potenciais herdados que já são seus) e ao mundo externo com sua complexidade e exigências sócio-culturais. A psicanálise chama esse processo de "integração do ego". Por ser um processo complexo e conflituoso, uma de suas consequências é o surgimento da ansiedade enquanto um mecanismo de defesa. É a partir daqui que continuo na próxima semana.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Moral e educação - Aprender e Ensinar

A moral e a educação são valores que recebemos de nossos pais ou cuidadores, desde o momento do nascimento. Durante a infância esses valores criam raízes muito complexas que normalmente determinam a forma da personalidade, do comportamento, do jeito de sentir e da capacidade de se relacionar o futuro adulto. O adulto continua recebendo influências e novos valores, mas lidará com eles de acordo com o grau de amadurecimento emocional que possui.  Esses valores são variáveis e estão vinculados à cultura, ao tempo e ao local onde se nasceu e/ou se vive. Embora haja diferenças muito grandes entre as diversas culturas existentes, curiosamente há uma enorme semelhança entre todas elas: a natureza humana e sua necessidade em sobreviver, se organizar e coexistir. Podemos dizer que é um potencial da natureza humana o indivíduo possuir uma capacidade para ser educado. Mas esse processo terá sucesso se o ambiente for suficientemente bom em propiciar as condições que possibilitem coisas como: confiança e "crença em" e idéias de certo e errado que devem se desenvolver através da elaboração dos processos internos da criança. A psicanálise chama isso de: "evolução de um superego pessoal." Em poucas palavras, superego é um conceito introduzido por Freud sobre a instância psíquica que atua nos indivíduos, como juiz e censor, na consciência moral, na auto-observação e na formação de ideais.

Pois bem, a moral e os valores precisam ser transmitidos para a criança, que precisa elaborar e desenvolver internamente o conteúdo recebido. Em outras palavras, a educação precisa ser compartilhada entre pais e filhos. Somente assim esse conteúdo terá validade futura. O que irá garantir essa elaboração pela criança, é o ambiente suficientemente bom. Não é possível incutir à força, valores ou crenças em coisa nenhuma. Isso não é educação, é violência. A criança precisa "confiar" e "crer" em quem está lhe ensinando algo. A confiança vem do ambiente, do gesto, da aceitação da dúvida, do bom-humor, da firmeza quando necessário, do sim, do não, da coerência de atitudes, da generosidade e principalmente, do exemplo dado. Na verdade a educação moral não funciona se a criança não tiver desenvolvido dentro de si própria, por um processo natural de desenvolvimento, a essência daquilo que lhe está sendo ensinado. Quando esse processo é bem sucedido, o futuro adulto será maduro emocionalmente. O amadurecimento emocional é o responsável: pela tolerância, generosidade, cuidado com o outro, com o estabelecimento tranquilo de limites, a capacidade de estar só, a capacidade de ouvir não, a capacidade de sentir culpa e o desejo de reparação.

Para falar de moral e educação é preciso se abordar a capacidade de socialização do ser humano.
Já disse aqui inúmeras vezes que não vivemos e não podemos viver sozinhos. O bicho-homem é basicamente um ser-social, um ser-em-relação. O ambiente neo-liberal em que vivemos tem sido o grande responsável em infundir a falsa idéia de que somos sujeitos isolados e "independentes". Há um grande reflexo desse falso conceito nas escolas e na educação de hoje. A cultura da "alta performance nas escolas" submete as crianças a uma enorme pressão, com uma agenda pesadíssima, repleta de compromissos. O objetivo maior é prepará-las para competir e conquistar um "bom lugar" no mundo corporativo futuro. Resta saber: a que preço? Honestamente eu tenho medo dos resultados que teremos no futuro. Disponibilizo aqui o link dessa boa reportagem da Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/saber/862572-sucesso-nos-eua-documentario-faz-critica-a-cultura-da-alta-performance-nas-escolas.shtml
tratando de um assunto que acredito ser muito importante para quem tem filhos em idade escolar.
A maior parte das pessoas que vive essa ilusão, descobre a duras penas e com muito sofrimento, que são mais "dependentes" do que desejaríam. Somos indivíduos sim, mas nossa constituição é mesclada pela convivência, pelo compartilhamento e pela capacidade de aprender e ensinar.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Dependência e Independência

Somos dependentes e independentes ao mesmo tempo, pelo simples fato de não podermos viver sozinhos! O "bicho homem" vive em sociedade e compartilhar faz parte de sua sobrevivência física, moral e psíquica. O forte desejo das pessoas em serem ou tornarem-se "independentes" em relação à problemas que enfrentam em seu dia-a-dia, normalmente torna-se uma importante fonte de angústia. Neste sentido, "independência" torna-se um sinônimo de "livrar-se de alguma coisa que traz sofrimento": relações conjugais que estão em seu final, empregos que já não trazem mais prazer para a pessoa, processos que envolvem longas esperas, etc. Não é incomum encontrarmos pessoas que chegam a adoecer quando enfrentam esse tipo de processo. O curioso é que ao mesmo tempo em que procuramos "livrar-nos" e tornarmo-nos "independentes" daquilo que "neste momento" nos traz sofrimento, sem perceber, estabelecemos outras relações de "dependência" que irão trazer alívio e bem-estar, para "esse momento": um novo emprego, um(a) novo(a) companheiro(a), novos processos, etc. Trata-se de um paradoxo absolutamente normal e corriqueiro na vida de qualquer pessoa. A diferença pode estar na forma e na maneira que normalmente se procura enfrentar essas crises. O modo mais comum é o simples desejo de livrar-se da angústia do "velho", a qualquer preço. Nessa ânsia repete-se o mesmo modus operandi de sempre na construção de novas relações, onde os problemas de "ontem", provavelmente se repetirão "amanhã".

A capacidade de entender que somos dependentes e independentes ao mesmo tempo, está diretamente relacionada a maturidade emocional do indivíduo. E a maturidade emocional não está relacionada apenas com o indivíduo - ela também está necessariamente relacionada com a capacidade do indivíduo em socializar-se. Socializar-se é a capacidade do indivíduo em identificar-se com o "outro", sem sacrifício demasiado de sua espontaneidade pessoal. Em outras palavras, o "adulto" maduro emocionalmente é capaz de satisfazer suas necessidades pessoais sem esquecer que o "outro" existe e que pode ser afetado positiva ou negativamente por suas escolhas, assumindo a total responsabilidade por seus atos. Uma sociedade saudável , tanto no nível maior de sociedade como no nível de uma simples associação, é formada por indivíduos amadurecidos emocionalmente. D.W.Winnicott menciona que "saúde mental é a mesma coisa que amadurecimento emocional". Em sua teoria, considera que para atingir o amadurecimento emocional a criança passa por três categorias: 1) dependência absoluta - quando o bebê depende totalmente de sua mãe para sua provisão física; 2) dependência relativa - o bebê já possui um repertório próprio que lhe permite interagir por conta própria; 3) rumo à independência - a criança torna-se gradativamente capaz de se defrontar com o mundo e todas as suas complexidades.

Considero que esses estágios se repetem na vida do adulto, toda vez em que ele se depara com as dificuldades inimagináveis que a vida proporciona: alguém que perde o emprego de uma hora para a outra, ou é vítima de alguma tragédia pessoal, ou se depara com traições inimagináveis ou qualquer outra, circunstância inesperada, boa ou ruim. Nessas horas é absolutamente normal e legítimo nos sentirmos desesperados. Com maturidade percebemos imediatamente que precisamos de ajuda e passamos a depender. Aos poucos vamos ganhando força e conquistamos a capacidade de olhar para o problema sem tanto medo e sem tanta dependência, para finalmente superar e ir adiante. O processo de busca pela independência que trará o alívio esperado é fundamental. Porém, será um alívio duradouro e saudável, se for conquistado com equilíbrio e maturidade.