quinta-feira, 3 de março de 2022

Conhece-te a ti mesmo - compreender e intuir


Oráculo de Delfos

“Conhece-te a Ti mesmo e conhecerás todo o universo e os deuses, porque se o que procuras não achares primeiro dentro de ti mesmo, não acharás em lugar algum.” (Frase supostamente atribuída à Sócrates, Heráclito ou Pitágoras).

Faz muito tempo que pensadores, filósofos e pessoas preocupadas em compreender a existência, perceberam a importância fundamental do ser humano em se conhecer mais profundamente. Talvez, o principal registro histórico que temos sobre a importância do autoconhecimento para a convivência do sujeito consigo mesmo e com as outras pessoas, seja a enigmática frase esculpida na porta de entrada do oráculo de Delfos: "Conheça-te a ti mesmo", frase que está diretamente relacionada à Sócrates, o pensador que marcou a filosofia e o pensamento ocidental. Marcou de tal forma, que quando nos referimos a filosofia, mencionamos o período pré-socrático, ou pós-socrático. Suas ideias foram consideradas por inúmeros filósofos que o sucederam, e são levadas em conta até hoje. Durante um bom tempo, achava-se inclusive que Sócrates não havia existido, que era apenas um personagem. Provavelmente por não ter escrito nenhum livro ou texto que pudesse comprovar. Acredita-se que preferia a cultura oral por considerá-la mais humana e efetiva. Mas sabe-se de sua existência pelos registros feitos por seus adversários e também por seu discípulo Platão, através de seus livros em forma de diálogos, especialmente dois deles: Líses (que trata sobre a amizade) e Fédon (trata sobre a morte de Sócrates). Seus antecessores escreviam em verso e prosa e Sócrates "conversava" fazendo perguntas diretas e embaraçosas sobre qualquer tema. Platão influenciado por seu mestre, quando escreve, escreve na forma de diálogos, ou conversas, com perguntas e respostas. A psicologia também se vale muito do método socrático. A TCC (Terapia Comportamental Cognitiva) por exemplo, se utiliza de uma técnica chamada "questionamento socrático", que tem por objetivo ajudar o indivíduo a elucidar e buscar o sentido dos comportamentos disfuncionais que apresenta e o fazem sofrer. De um certo modo a psicanálise também o faz ao analisar sentimentos e pensamentos, ajudando o paciente a encontrar respostas que na verdade, já possui. Bem aplicada, essa técnica realmente colabora muito. 

O pensamento intuitivo 

Mas, somente racionalizar é comprovadamente insuficiente para compreender o mundo e a vida. Apesar de Sócrates e sua enorme contribuição para o pensamento ocidental, a razão por si só é insuficiente para de forma equilibrada, ampla, centrada e produtiva, compreendermos e atuarmos na vida, que as vezes é maravilhosa, as vezes é triste, tediosa e muito difícil. A psicologia percebeu e tem estudado que além da percepção consciente da realidade, aquela em que percebemos o mundo através dos sentidos e racionalizamos para compreendê-lo, também percebemos o mundo de uma forma inconsciente e intuitiva. O pensamento intuitivo é aquele que nos posiciona nas "entrelinhas", daquilo que não é visível e concreto.

A percepção inconsciente da realidade ocorre de forma natural e mecânica com todas as pessoas, diante de todas as situações da vida. Só precisamos notar, prestar atenção e lhe dar a devida importância para aquelas que tenham um sentido em um significado que seja relevante. O pensamento intuitivo faz com que a compreensão da realidade do momento ocorra instantaneamente, sem o auxílio da lógica e da razão. Não é verbal, é simbólico e se baseia em sinais e sensações que escapam a racionalização. Por ser uma manifestação do inconsciente, não pode ser explicado de forma lógica e intelectual pela consciência. Ou seja, quase sempre nem nos damos conta. É a informação invisível que sempre está nas entrelinhas de quase tudo o que acontece.  

Está muito presente na vida cotidiana e apesar de invisível, podemos evitar muitos problemas se o levarmos em conta e o obedecermos. Alguns exemplos muito comuns: médicos com aquele olho clínico privilegiado, que descobrem diagnósticos muito difíceis que nenhum exame descobriu; empreendedores que tomaram decisões consideradas absurdas, mas que depois se mostraram como o melhor caminho a seguir; artistas que constroem músicas, poesias ou imagens que nos hipnotizam de tanta beleza e capacidade de síntese etc. 

São muitos os exemplos e estudiosos identificaram e classificaram quatro tipos de pensamento intuitivoo emocional que é a capacidade de detectar traços da personalidade das pessoas ou o estado emocional em que se encontram (muito útil e comum em profissionais da saúde mental); o mental que encontra respostas instantâneas para um problema que é muito urgente, sem analisá-lo racionalmente; o psíquico que percebe  o bom e o ruim dos ambientes sociais e de trabalho, e tem a capacidade de equacionar e superar dificuldades pessoais, sem o looping desgastante de racionalizações a respeito; o espiritual que alcança estados de iluminação e revelações - está associado mais às experiências do que a fatos. 

A intuição faz parte da natureza humana e ocorre naturalmente com qualquer pessoa. Apesar de haver opiniões divergentes na ciência, minha experiência me leva a crer que não se trata de uma habilidade que precisa ser adquirida e aprendida, embora precise ser treinada. O mais importante é que está dentro de cada pessoa, não fora. E essa é a atenção que procuro chamar aqui, que é a nossa capacidade que pode ser desenvolvida para perceber, levar a sério e confiar no pensamento intuitivo. E por que motivo não o fazemos? Penso que isso ocorra porque não fomos ensinados e estimulados para isso. Então passamos a ter medo de começar a achar que estamos ficando pirados, prestando atenção em sensações e impressões que muitas vezes são estranhas e muito diferentes. E por vivermos em um mundo que privilegia e estimula os sentidos mais concretos, como forma de compensação de nossas angústias, escolhemos essa forma mais superficial para viver. Em especial as sensações de prazer causadas pelo poder de consumir. Lidamos com nossas angústias, principalmente buscando prazeres externos e consumindo. O falso sentido da vida passa a ser ganhar dinheiro, status e poder para continuar consumindo.

Praticar para facilitar essa percepção do pensamento intuitivo e se ter uma boa saúde mental, é como a necessidade de se fazer exercícios físicos regularmente para se manter uma boa saúde física. Além da falta de prática, existem bloqueios que normalmente impedem o fluxo do pensamento intuitivo. Estão associados aos nossos complexos, traumas e neuroses e acabamos confundindo impressões. Podemos achar que temos uma impressão de que determinada pessoa não seja boa e confiável, mas na verdade, de forma oculta está uma certa inveja que sentimos do sucesso dessa tal pessoa. Esse é um exemplo muito comum que descaracteriza o pensamento intuitivo. Na verdade não houve um pensamento intuitivo. Houve uma manifestação inconsciente de um complexo, que são memórias carregadas de emoção que acabamos projetando indevidamente. Ou seja, um complexo bloqueou a intuição. A prática ajudará a tornar esses bloqueios mais evidentes, ou conscientes. Uma vez conscientes, a razão irá fazer seu trabalho de compreensão racional dessas dificuldades e  poderá contar com a ajuda do próprio inconsciente para organizar e buscar solucionar. 

E como se pratica? O que posso fazer? Como devo fazer? São muitas as formas que podemos "praticar" a escuta do inconsciente: observar e buscar analisar os sonhos, os lapsos, práticas meditativas, fazer yoga, fazer terapia, rezar, ver e fazer arte etc. Todos esses exemplos facilitam o contato consigo mesmo pela capacidade de mudar a frequência do pensamento e aumentar a percepção de si mesmo e do mundo está fora. 

Por que se conhecer é importante?

Se autoconhecer é um pilar fundamental para o desenvolvimento pessoal e civilizatório. Há uma carapaça no mundo e em nós mesmos, uma máscara que todos nós construímos e que faz com que achemos que todas as verdades estão ali, na superfície do que é aparentemente concreto e visível. Olhar por debaixo dessa máscara, é se autoconhecer. É preciso coragem para se olhar e perceber o que há por trás da própria máscara, encarando os anjos e demônios (esses em especial...) que encontrarmos. Se conhecer é a forma mais segura de se manter o equilíbrio psíquico, que é a capacidade de se conviver adequadamente e criativamente com as forças opostas e contraditórias da nossa psique. Em síntese, ter saúde mental.

A psique em equilíbrio gera a capacidade de se controlar impulsos e instintos e, de promover criatividade, espontaneidade para se viver uma vida mais satisfatória e com mais sentido. Percebendo como nossos demônios atuam, verificamos como somos impulsionados para atitudes e comportamentos que sempre são repetitivos. Exemplos: pessoas que sempre reclamam por se apaixonar por um determinado tipo de homem ou de mulher; pessoas com ansiedade excessiva que sempre acabam excluídas dos grupos sociais que frequentam por serem muito invasivas pelo excesso de medo; pessoas que não conseguem manter relacionamentos mais profundos porque sempre se apaixonam por outra pessoa quando o relacionamento em que está começa a se aprofundar; etc. 

Essa ação que é interna e de cada pessoa, certamente irá refletir significativamente no coletivo. Considero que dificilmente uma pessoa equilibrada vai matar outra pessoa no trânsito porque levou uma fechada, ou espancar a mulher porque se sentiu traído, ou violar uma criança porque se sentiu atraído demais. Todos esses exemplos terríveis sempre ocorrem quando há desequilíbrio. Quando há o desequilíbrio, quem se apresenta em nossas ações e comportamentos são os instintos, impulsos, traumas e mecanismos de defesa. Sempre considerei que déspotas da história da humanidade possuíam desequilíbrios psíquicos graves: Hitler, Mussolini, Stalin e muitos outros, apenas para citar alguns mais conhecidos. E não tenho dúvida alguma que esse desequilíbrio esteja na raiz das aberrações que infelizmente estamos assistindo diariamente nestes tempos muito difíceis: violência descabida, guerras absurdas, falta de empatia, preconceitos inaceitáveis, polarização, falta de empenho e desejo para combater a enorme desigualdade social, muitas opiniões e nenhuma vontade de se conhecer realmente o problema etc. 

O desequilíbrio psíquico causa danos em nossa consciência que ainda é muito frágil, e que podem se tornar permanentes. Nestes tempos muito difíceis, esses são sinais claros de que a saúde mental geral não está nada bem. E sem ela, vai ser difícil mudarmos para melhor.