quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

O inconsciente: o grande mistério da natureza humana


Todo mundo já se pegou ou presenciou as seguintes situações: vou até o quarto buscar algum objeto e, apesar de ter o pensamento claro sobre o que vou fazer, de repente "esqueço" o que ia fazer. Aquilo que era muito claro eu esqueci, desapareceu da minha mente consciente - ou seja, tornou-se inconsciente. E pode voltar para a consciência (eu me lembrar) em alguns momentos, ou jamais voltar. 
Em uma conversa com amigos, de repente falo alguma coisa que jamais diria conscientemente. Peço desculpas e tento consertar e resolver o embaraço que acabei criando sem querer (mas querendo... mesmo sem saber). Certamente o que foi dito de maneira imprópria estava inconsciente e emergiu de repente, sem aviso. Algumas vezes temos atitudes que consideramos como irracionais e que não teríamos normalmente. Nessas situações as pessoas costumam dizer: "não era eu quem estava falando ou fazendo tal coisa... não é possível"... É certo que tais atitudes foram consequência de sentimentos inconscientes, reprimidos ou não, que emergiram e influenciaram de uma maneira boa ou ruim o nosso comportamento. Em resumo, existe uma parte considerável de nossa mente que desconhecemos e não temos acesso ou controle, mas que influencia e determina nosso estado de espírito e comportamentos nos muitos momentos da vida.

O mistério da natureza humana

Desde tempos muito remotos e antigos, o homem percebia e acreditava que existiam influências sobre o pensamento consciente de uma pessoa. Normalmente eram consideradas como tentações ou inspirações divinas ou influências dos deuses. Filósofos e pensadores também se ocuparam em tentar compreender e de alguma forma e sistematizar, o "lado irracional" do ser humano: Platão em algumas passagens de "A República", descreveu como os homens em estado de sono, davam vazões a várias coisas, que se estivessem acordados, jamais fariam. E muitos outros filósofos ocidentais (Schpenhauer, Espinoza, Leibniz, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche) já se utilizavam da expressão inconsciente desde a publicação em 1800 da obra: "Sistema de idealismo transcendental" do filósofo idealista alemão Friedrich Schelling. Muitos acreditam que foi Schelling quem cunhou a expressão inconsciente
A curiosidade sobre o grande mistério da natureza humana inconsciente, também foi tema da literatura.  Talvez a obra que Robert L Stevenson publicou nos anos 1880 "O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (O médico e o monstro)" seja um ótimo exemplo: Dr. Jekyll se ocupava em realizar experiências em que acreditava ser possível controlar quimicamente os lados bom e ruim da personalidade humana. Testando em si mesmo o "soro" que havia inventado, acabou libertando seu lado monstruoso e cruel. 
Assim que surgiu, a psicologia adotou o tema como objeto de estudo, e no século XIX os psicólogos experimentais Gustav Fechner e Wilhem Wundt passaram a levar em conta a expressão inconsciente em seus estudos sobre a maneira como a mente consciente organiza os "múltiplos e confusos dados dos sentidos".  Esses estudos até hoje são uma forte base de pesquisa dos psicólogos cognitivistas. 

Freud e a psicanálise

Freud deu um novo e incrível registro sobre a mente inconsciente, criando a psicanálise e permitindo que esses conceitos pudessem ir adiante com seus muitos seguidores e autores. Acredito que se preocupou mais com a etiologia dos distúrbios e sintomas causados por conteúdos inconscientes recalcados, e a forma como afetam o estado de espírito, comportamentos e a vida das pessoas. Para a psicanálise freudiana o inconsciente é o espaço onde se concentram conteúdos recalcados, de natureza pessoal e com origens nos desejos infantis. É desse ponto que surge um dos pilares da teoria psicanalítica com o complexo de Édipo. Durante a infância, a influência moral do ambiente gera a repressão de desejos que podem durar por toda a vida. A repressão ocorre de forma intencional e ao mesmo tempo inconsciente: assim esquecemos conteúdos que causam angústia e sofrimento, como forma de defesa e de sobrevivência psíquica. E esses conteúdos não desaparecem, estão apenas esquecidos, mas continuam latentes, em ação, interferindo no comportamento e no estado de espírito da pessoa. 
Em síntese, a análise tem como objetivo facilitar para que esses conteúdos reprimidos possam migrar gradativamente para a consciência, e que de alguma forma possam ser ressignificados e assim, não produzirem mais sintomas e aliviarem o sofrimento psíquico. 

         
Jung: o inconsciente é simbólico e dividido em pessoal e coletivo

Para Jung o conteúdo inconsciente
é composto principalmente de imagens
simbólicas
e também é dividido em duas partes: uma parte de natureza pessoal que contém todas as experiências do indivíduo, e outra parte de natureza coletiva, que trata de tudo que a humanidade teve como experiência psíquica e subjetiva e que recebemos como herança ao nascermos. 

imagens simbólicas: Transcrevo aqui a própria definição de Jung em "O Homem e seus Símbolos", que considero irretocável - "... símbolos podem ser um termo, um nome ou uma imagem que pode ser familiar e conhecida, mas que possui conotações especiais que vão além do seu significado evidente e convencional. Esse algo especial a mais, normalmente é vago, desconhecido ou oculto para nós". Ou seja, o que Jung está nos dizendo é que tudo aquilo que foge da compreensão racional humana, é representado por símbolos. Um bom exemplo é o símbolo do infinito, ou a imagem do Espírito Santo, ou a imagem de um ser divino. Representam conceitos que sabemos o que são, mas nunca totalmente. E essa deve ser uma das fortes razões por que as religiões se utilizam de uma linguagem simbólica. Ou mesmo a psicanálise que recorreu a mitologia para explicar conceitos muito abstratos e de difícil compreensão. Este é um processo natural de funcionamento da mente humana e que também ocorre de maneira espontânea e inconsciente enquanto dormimos: produzimos símbolos na forma de sonhos. 

inconsciente pessoal: Diferentemente de Freud, Jung considerava que além dos conteúdos reprimidos (os complexos), o inconsciente também possui conteúdos subliminais. São conteúdos sem nenhuma carga afetiva envolvida. Estão inconscientes porque não eram fortes o suficiente para a consciência mantê-los. Assim, o que está no inconsciente não necessariamente foi reprimido, mas simplesmente não foi percebido totalmente: podem ser fatos e informações que passaram pelos sentidos de alguma maneira e a consciência não percebeu. Um exemplo: andar diariamente por uma rua e "não perceber" que lá existe um prédio ou uma praça que você nem sabia. Ou seja, nem percebia.
Os complexos são representações de experiências individuais carregadas de afeto, boas ou ruins. Tornam-se ruins ou negativos quando criam proporções maiores do que a consciência consegue lidar. Exemplo: uma pessoa que tenha complexo de inferioridade (e que não sabe porque é um conteúdo inconsciente), sempre sente muita raiva e se torna ou muito agressiva, ou muito ausente ou até mesmo deprimida, toda vez que alguém próximo (ou não...) consegue elogios ou realiza uma conquista com méritos. De alguma maneira, o sucesso alheio reforça o seu complexo. Os complexos acabam utilizando uma quantidade excessiva de energia psíquica e a consciência não consegue dar conta. E é nesses casos que os sintomas e distúrbios ocorrem. Então não existe bula e nem protocolos para essa questão: os complexos são ímpares e totalmente relacionados com a intimidade de cada pessoa. 

inconsciente coletivo: Jung percebe que a mente humana também está em processo de evolução, desde as origens mais primitivas da humanidade. E essa psique infinitamente antiga, é a base mais profunda da mente, que é passada de geração para geração. Assim como biólogos descobriram que a estrutura do nosso corpo se fundamenta no molde anatômico dos mamíferos em geral, por exemplo. 
São conteúdos idênticos em todos os seres humanos - temas e imagens comuns em qualquer civilização ou cultura, que não dependem de nenhum conhecimento prévio adquirido pela pessoa. Chegou a essas conclusões através da sua experiência clínica e também através de estudos de literatura, religião e cultura comparada. Em sua experiência com pacientes psicóticos, percebeu que haviam delírios que traziam temas e imagens de mitos antigos, que essas pessoas jamais tiveram algum tipo de contato. Temas e imagens que se repetem nas diferentes mitologias, religiões, contos de fadas e manifestações artísticas. Naturalmente, diferentes povos e diferentes culturas repetem essas imagens. E para essas imagens, deu o nome de arquétipos, que significa: modelo, padrão. O inconsciente coletivo então, é povoado por arquétipos e instintos.

O que o levou a fundar sua teoria foi a observação muito acurada sobre o simbolismo dos sonhos dos milhares de pacientes que analisou. Em conjunto com essa observação, a clara constatação de que muito dos problemas e sintomas eram esclarecidos ou atenuados quando essas mensagens inconscientes e simbólicas enviadas através dos sonhos, eram percebidas e analisadas. Daí a grande importância dada ao conteúdo inconscientee também seu papel fundamental no equilíbrio psíquico. Mais do que um "depósito de recalques", para Jung o inconsciente passou a ser visto como uma peça fundamental para o equilíbrio psíquico: inconsciente consciência funcionam de forma complementar, onde um depende do outro, e essa dinâmica funcionando de forma adequada, acaba por fortalecer a consciência.