sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Corpo-do-Outro

Buscando fazer um fechamento com os outros textos onde tratei sobre a Matriz de Identidade, considero importante fazermos uma síntese de tudo o que foi dito. A Matriz de Identidade de Moreno descrita por Naffah Neto, mostrou que na primeira fase do desenvolvimento infantil surge o "corpo-disperso", onde a criança não se diferencia do mundo que a cerca. Após a identificação da criança com certas partes corporais suas, acentuada pelas necessidades fisiológicas, surge o "corpo-parcial", ainda sem unidade no tempo e no espaço. Lentamente, na medida em que ocorre a maturação do sitema nervoso e, através do "reconhecimento" (aceitação) recebido pelo mundo que a cerca, a criança desenvolve o "corpo-parcial". Quando passa a reconhecer-se através do espelho, surge o "corpo-unitário" em que a criança finalmente atinge a "identidade do eu". Uma identidade que ainda está incompleta pela ausência da identidade social, que são os papéis e posições que ainda não possui no seio da família. Sem essa incumbência social e vivendo a margem dessa ordem e dessa cultura, põe-se como "pessoa privada", acreditamdo-se como o centro do universo (fase do egocentrismo acentuado). Essa fase irá terminar lentamente, na medida em que os limites impostos pela educação dos pais e pela realidade da vida, demonstrarem que o seu poder é limitado. A criança entende esses limites como sendo uma ameaça verdadeira ao seu poder. Buscando reconquistar o poder perdido, responde à essas ameaças e limitações que lhe são impostas, imitando e identificando-se com os adultos. Nesse jogo lúdico onde "inverte papéis com seus pais", coloca-se no lugar dos adultos e desenvolve a capacidade de catalisar o imaginário e transformá-lo em ação, unindo fantasia e realidade numa ação espontânea de conquista simbólica do mundo. Nessa fase (a terceira) transforma seu corpo num "agente de conhecimento", abandonando a marginalidade e o isolamento anterior, restritos a um mundo privado. Essa é a ponte para descobrir-se como "corpo-cultural" ou "corpo-simbólico". Isso quer dizer que a criança descobre-se como pessoa singular, ao mesmo tempo em que descobre "o outro", criando e transformando novos papéis e localizando sua posição real neste mundo.

Quando esse estágio do "corpo-simbólico" não é alcançado e nem atingido, a criança permanecerá existindo como "corpo-parcial" ou "corpo-pessoal", dependendo da fase da Matriz da Identidade onde seu desenvolvimento se perdeu e se cristalizou, transformando-se em "conserva" (Moreno chama de "conserva" toda ação estagnada ou não-refeita e recriada). Podemos citar exemplos onde o "corpo-parcial" aparece claramente nas somatizações do histérico e na vivência de desproteção do fóbico. Já o "corpo-pessoal" demonstra claramente a falta de limites culturais e voluntarismo excessivo, que estão na descrição e definição da personalidade psicótica. Para Moreno, a existência psicótica sequer chegou a se constituir como "corpo-próprio" . Desde muito cedo foi transformado em um receptáculo de um drama familiar, representando um "corpo-negado", "corpo-nadificado", "corpo-alienado", destinado a dramatizar o seu próprio assassinato como ser humano. Isso significa que, por ser excluído naturalmente de sua função social primeira no seio da família, seu corpo é possuído por um drama alheio, que representa o "Outro". Drama alheio que o acompanhará por toda a vida.
Dessa forma o corpo do psicótico representa o "corpo-do-Outro". O psicótico vive o seu drama que oscila entre o imaginário e o real (delírios e alucinações), não somente porque lhe falte contato com a realidade, ou porque perceba menos ou de forma distorcida aquilo que vive. Na definição moreniana, o psicótico rompe com a realidade, por percebê-la demais! Faz isso e aje como um subversivo, para colocar em xeque a ordem cultural instituída, onde seu discurso é marginalizado e o seu corpo amarrado e negado. Sua imaginação é o seu exílio do mundo dos homens, seu discurso é uma denúncia daquilo que o acorrenta. Como "corpo-do-outro" é a expressão mais adequada do drama coletivo.

Para o psicodrama o corpo é descrito como um fundamento existencial, como um grande cenro virtual de ações. O "ser-em-situação" descrito pelo existencialismo de Bergson, ocorre através do uso do corpo que também funciona como uma ponte de ligação entre o passado, o presente e o futuro, entre o real e o imaginário. É através do corpo que expressamos nosso modo de ser, nosso posicionamento neste mundo, nossa forma de amar e de se relacionar. Moreno acrescenta que o corpo é um núcleo constantemente estimulado pelas diversas tramas que a sociedade lhe impõe, ou pelos reflexos imaginários onde busca algum refúgio. Está sempre em situação, sempre visando o mundo, mesmo que aja de forma alienada, mesmo que seus olhos só se abram para o que ele queira ver, ainda que existindo como um mero papel.

Um comentário:

  1. Manoel, muito interessante a visão do psicodrama para definir a questão do psicótico. Como trabalho em hospital psiquiátrico, posso identificar que tratam o próprio corpo, como se não fosse seu. No dia a dia mesmo quando não estão surtados, é comum não terem cuidados com a higiene pessoal e se ferirem com muita facilidade. Acredito que essa seja uma relação.
    Parabéns!!

    Tatiana

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