sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Matriz de Identidade de Moreno -O Reconhecimento do Eu e do Tu

A etapa de reconhecimento do eu é descrita por Moreno como a segunda etapa do desenvolvimento infantil. Nesse momento a criança passa a perceber-se como uma pessoa singular, podendo reconhecer-se através da imagem de si mesma, refletida pelo espelho. É um processo lento e gradativo, pois inicialmente a criança não se reconhece diante do espelho. Somente aos poucos é que, através da correspondência entre a vivência interna do corpo e sua aparência externa, por meio de uma simetria que aparece através dos movimentos realizados diante do espelho, o corpo conquista a sua unidade. O primeiro e grande espelho da criança até então, eram os olhos de sua mãe, através de um olhar que não era neutro e que revestiu a corporeidade da criança com o desejo do adulto: exigências e expectativas ao seu papel na família ("...olha como ele é sério... tem o jeito do avô; ...é a cara do tio; ...já mostrou que tem personalidade; etc) . Nesta fase a criança depende totalmente desse "papel" que lhe foi atribuído por aqueles que a cercam. Espera-se e é muito importante, que esse "papel" seja revestido pelo reconhecimento  da criança, por sua mãe principalmente, e também por todos que a cercam. Em outras palavras, isso pode ser chamado de "aceitação": "nos te aceitamos, te valorizamos e te desejamos nessa família e neste mundo". A percepção desse sentimento de "aceitação" pela criança, influenciará sua personalidade e sua capacidade de amadurecimento emocional, pelo resto de sua vida. Percebendo que é amada e desejada, terá a sensação de que pode se arriscar e buscar alternativas para as questões da vida que irão surgir, através de seu próprio esforço, de modo seguro, espontâneo e criativo. Saber esperar, saber ouvir os outros e ao mesmo tempo saber se colocar com suavidade nos contextos que a vida cotidiana exige, depende totalmente do amadurecimento emocional do adulto. Nos estudos que ando desenvolvendo sobre a ansiedade excessiva, que apresenta comorbidades relacionadas a insônia e também ao pânico, tenho percebido que pode haver uma forte relação entre os sintomas apresentados pelos pacientes, com essa base afetiva que permite e dá condições ao amadurecimento emocional. Basta lembrar que pessoas muito ansiosas tem muita dificuldade em ouvir e em esperar.
A partir dessa conquista que envolve os primeiros passos da construção de sua própria identidade, a criança descobre-se como uma pessoa distinta das outras pessoas. O corpo dessa fase passa a ser chamado de "corpo pessoal". Sua identidade ainda não está completa, por ainda não exergar-se com uma identidade social própria, ou seja, ainda não se vê ocupando uma posição e um papel no seio da família, através dela mesma. O desenvolvimento de seu ego ainda depende do papel que lhe foi atribuído através das expectativas de sua mãe e do reconhecimento primeiro. E por ainda viver à margem da ordem e da cultura, o corpo põe-se como "pessoa privada", que tem como principal característica, ver-se como o centro do universo - fase muito conhecida pelo egocentrismo acentuado da criança. Há uma relação entre a capacidade que a criança desenvolve para dominar sua própria imagem diante do espelho e, sua expectativa em dominar todos que a cercam, mantendo-os servos de suas vontades e desejos. Fazendo isso, a criança reduz os papéis sociais de pai e mãe, a papéis de seu mundo pessoal e privado. Essa fase será modificada e terminará aos poucos, através dos limites que a educação irá lhe impor. Esses limites serão os balizadores que produzirão uma resistência construtiva ao egocentrismo acentuado da criança. Limites impostos pelos pais, pelas pessoas que cercam essa criança, preparando-a para lidar no futuro, com os limites impostos pela realidade da vida. A partir de então a criança percebe que seu "poder" é limitado, que as pessoas que a cercam não são suas servas e que a convivência com o mundo vai lhe exigir novas posturas e "novos repertórios" que terão que ser descobertos por ela mesma.

As limitações impostas pelos adultos forçam a criança a identificar-se com eles, utilizando isso como estratégia para reconquistar seu "poder". Ao identificar-se com o adulto e representar ludicamente o seu papel ("... agora eu sou a mamãe e vou calçar seu sapato e usar seu colar; ... agora eu vou trocar a fralda da boneca porque ela fêz cocô; vou fazer a comidinha da boneca; etc), a criança passa a conquistar o que Moreno chamou de "função psicodramática": capacidade de jogo simbólico onde inverte os papéis com os pais e descobre através dessa vivência, a rede dos papéis sociais na qual está inscrita sua identidade. Nesse estágio a criança desenvolve a capacidade de catalisar o imaginário e transformá-lo em ação, unindo fantasia e realidade, através de uma ação espontânea de conquista simbólica do mundo. Sua capacidade de ser criativa transformando fantasias em ações, está em pleno funcionamento. Seu corpo se transformará em um "agente de conhecimento", descobrindo sua posição no mundo cultural, o mundo verdadeiramente humano, deixando o isolamento e a marginalidade do mundo privado e egocêntrico. O corpo passa a ser chamado de "corpo cultural" ou "corpo simbólico", onde o reconhecimento de "si" se cristaliza e, surge o reconhecimento do "outro" ("... quero brincar com minhas amiguinhas; papai chegou; vovó faz comidinha gostosa; etc). Quando passa a reconhecer as outras pessoas e a respeitá-las enquanto seres singulares que não estão única e exclusivamente à "seus serviços", a criança conquista a unidade de "ser-no-mundo", através de um "corpo ativo", que reconhece sua posição real e que, por isso mesmo, é capaz de transformá-la, através do desempenho e da recriação do papel inicial que lhe foi destinado pelas expectativas dos adultos. As brincadeiras lúdicas onde a criança representa papéis que imitam os adultos, transformam a espontaneidade instintiva, antes como uma simples capacidade adaptativa, numa função criativa e renovadora.
"Agora o corpo vive mergulhado no real, posicionando-se segundo seu fluxo de transformação: como corpo simbólico é capaz de apreender o real humano, situar-se frente às contingências do presente e catalisar o imaginário, transformando-o em ato criador" - J.L.Moreno.

Em minha próxima postagem continuo com as fases do desenvolvimento, abordando aspectos da psicopatia.

Um comentário:

  1. Quando se fala no "corpo" através do Psicodrama, começo a entender o jeito que nosso corpo fica com a idade e também com a doença. Enxerguei a mim mesmo e a vários amigos sessentoes. Todos nos tivemos algum tipo de problema na primeira infância e sempre conversamos sobre isso. Muito legal seu texto. Parabéns!

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