sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Quando a doença entra em cena - relação saúde / doença

                                                                       (O médico - 1891 - Sir Samuel Luke Fildes)

A vida moderna e corrida é uma máquina de estímulos que nos mantém sempre ocupados, correndo atrás do próprio rabo, não parando para ver e escutar qualquer coisa que atrapalhe nossa maratona diária. É comum a sensação de se estar sempre atrasado, nunca se estando onde realmente se está: o aqui e agora praticamente não existe em nosso dia-a-dia porque o pensamento sempre está no próximo compromisso, e nunca naquilo que se está fazendo realmente. Falamos muito mais do que ouvimos e para nos proteger, criamos um certo isolamento que nos mantém longe dos problemas e dificuldades das outras pessoas. Em outras palavras, confundimos privacidade com individualismo e usamos isto como desculpa para nos mantermos distantes, isolados e protegidos. Vivemos numa roda-viva que costumamos criticar, mas que diariamente alimentamos e damos força, mesmo sem perceber. Repetimos conservas e padrões de um comportamento mecânico, que são adequados para um sistema econômico e social, que precisa que todos estejam permanentemente "produzindo e consumindo". Neste estado mantemos uma fantasia muito comum: quanto mais me movimentar, mais vou conquistar e consumir. Quanto mais movimento mecânico e não espontâneo, menos criatividade, menos tempo para a escuta e para o compartilhamento.
Na maior parte das vezes se estabelece um ciclo infinito, onde sempre se corre atrás daquilo que não está aqui e agora, mas em algum lugar do futuro ou do passado. Este ciclo costuma ser rompido drasticamente nos momentos em que surge alguma adversidade, capaz de tirar o sujeito de sua maratona infinita. Nos momentos em que a vida apresenta adversidades, as pessoas costumam lembrar que precisam muito umas das outras. A doença é uma das adversidades que força o sujeito a lembrar de que não vive sozinho. Receber um diagnóstico médico indesejado para si, ou para alguém próximo, é sempre assustador. A doença tem o poder de excluir o sujeito da roda produtiva e consumidora, acrescentando ao sofrimento que já produz naturalmente, o sentimento de vergonha e humilhação. Parte importante da tristeza que se estabelece com o surgimento da doença, está relacionado com a vergonha de não se sentir mais produtivo.
No momento em que alguém recebe uma notícia ruim sobre sua saúde, ou sobre a saúde de alguém próximo, a vida vira de pernas para o ar. Quase tudo que tinha muito sentido, deixa de ter sentido e surgem os sentimentos angustiantes de medo, desamparo e indefinição. Quando a doença entra em cena, o distanciamento que antes protegia passa a ser uma das maiores dificuldades e fonte de sofrimento.
O sujeito doente que sai em busca de um profissional ou instituição para ajudá-lo, tem a fundamental necessidade de calor humano, acolhimento e orientações esclarecedoras. Sabemos e escutamos histórias de que houve um tempo, em que profissionais e instituições cuidavam do corpo doente de uma pessoa, mas também se preocupavam em estimular o otimismo e a alegria, que são ingredientes mágicos e preciosos no processo de qualquer tipo de cura e tratamento. A escuta atenta e continente da história do sujeito, a empatia e a generosidade são elementos fundamentais nesta relação. Quando se procura por ajuda profissional, procura-se por esse sujeito quase mítico, capaz de acolher, ouvir, entender, orientar e ajudar.
Nestes momentos difíceis, espera-se muito mais do que conhecimento técnico e científico.

Os profissionais de saúde que em tese são aqueles que conhecem e tem acesso a sabedoria da ciência, possuem o status de "deuses" nos momentos angustiantes causados pela doença. Um status que quase sempre os envaidece. O imaginário comum está repleto de "deuses" que salvaram muitas vidas e devolveram a alegria para muitos doentes e suas famílias. E muitas vezes isso foi, ou é verdade, felizmente. Mas quando falamos na visão moderna que a ciência apresenta sobre a saúde, especialmente na saúde pública, na maior parte das vezes o sujeito doente se defronta com profissionais e instituições que não possuem tempo para olhá-lo, escutá-lo e estimulá-lo.  O atendimento disponibilizado para a população costuma ser rápido e impessoal, se preocupando mais com o cumprimento de regras e protocolos reconhecidos cientificamente. Quase não há conversa e compartilhamento, apenas uma racionalidade científica, médica e sociológica, que busca enxergar e proteger a saúde, mas que costuma se esquecer do sujeito. A saúde é enxergada através da decomposição do corpo humano em elementos constituintes, no funcionamento e desagregação deste elementos, na relação dos seres humanos com seus corpos, nas mentes humanas, na sexualidade humana, no sofrimento humano e na morte humana.
Esta visão está profundamente enraizada e atrelada a atuação do profissional, que possui um discurso técnico e especializado, focado nas relações das ciências com suas próprias teorias e conceitos. O sujeito doente está fora deste discurso.
A essência da racionalidade científica é claramente construtivista, mas sua forma de atuação a torna excessivamente prática, impositiva e classificatória: os anormais portadores de doenças, síndromes e distúrbios. Impessoalizar o atendimento faz com que vertentes mais subjetivas do sujeito adoecido, sejam ignoradas. Com isso perde-se a oportunidade de se acrescentar elementos mais humanos e determinantes na relação saúde / doença. Não é incomum pessoas doentes esconderem dos profissionais que as atendem, por puro medo ou pura incompreensão, fatos relevantes que poderiam contribuir muito com seu diagnóstico, tratamento e desenlace. Não se sentem a vontade e não confiam, contribuindo para o aumento do distanciamento desta relação.
É preciso lembrar que os profissionais de saúde também fazem parte deste mundo corrido e surdo. E como todas as pessoas, muitas vezes se comportam como surdos e ilhados, mesmo nos momentos em que suas atitudes, crenças e capacidade em proporcionar afeto, possuam um enorme peso e poder de influência. Lembrá-los disto quando necessário, é uma importante contribuição que talvez ajude a reduzir este distanciamento. Tenho a forte crença de que a vida só tem sentido nas relações de afeto, troca e aprendizagem que somos capazes de construir e manter. Embora reconheça que nos dias de hoje esteja cada vez mais difícil manter esta crença, me esforço muito para manter este propósito.
A atitude de acolher, escutar e compartilhar talvez esteja mais atrelada pelos ideias contemplativos do Ser e de suas causas, oriundos da filosofia grega clássica. Parece que em algum momento da história a ciência se distanciou destes ideais, permitindo que seu lado mais pragmático, aparentemente neutro e impositivo, ocupasse a maior porção do espaço na relação saúde / doença.