quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Morte e Nascimento - A capacidade de estar junto e ao lado


Tempos atrás me foi recomendado um paciente de 8 anos de idade, que após a morte de seu avô passou a enfrentar dificuldades na escola e a ter medo de ficar sozinho. Sua mãe era solteira e todos moravam juntos com os avós. A falta do pai biológico contribuiu para que fosse muito apegado ao avô. Com a morte dele a família considerou que seria melhor para uma criança de 8 anos, ser poupada de saber  o que havia acontecido. Tal decisão, embora muito questionável, foi o melhor que puderam pensar e fazer naquele momento confuso e muito difícil. E assim meu paciente não participou dos últimos momentos de seu avô, bem como de seu velório e funeral. Somente depois de alguns dias sua mãe encontrou uma forma de lhe dizer o que realmente havia acontecido. Após alguns meses sua família percebeu os sintomas que o trouxeram para a terapia: isolamento, medo de ficar sozinho até mesmo para tomar banho, e queda de rendimento na escola. 
Em nossos encontros percebi que meu paciente estava confuso sobre o significado de morrer: "Meu avô não vai mais voltar? Todo mundo morre?" Tinha muita curiosidade em saber o que era morrer e como eram os funerais, sentindo ao mesmo tempo muito medo. 
Mesmo que tenha sido com a melhor das intenções, sua família acabou lhe tirando a possibilidade de  acompanhar os últimos momentos do avô e, participar dos rituais de despedida característico dos funerais.


Em uma das sessões concordamos em dramatizar uma cena de velório.  O “morto” da cena foi idealizado pelo paciente com a ajuda de almofadas e outros objetos do consultório. Segundo ele o morto era um amigo imaginário que estava muito velho e por isso havia morrido. Construímos a cena e ficamos num silêncio de velório (angustiante...), por quase 10 minutos. Num certo momento me perguntou o que o morto estava pensando e para onde ele iria. Respondi que não sabia e perguntei se ele gostaria de ocupar o lugar do morto (trocar de papel), para tentar imaginar "o que os mortos pensam e para onde vão". Ele concordou e retiramos as almofadas para que assumisse o novo papel. O paciente ficou ali imóvel e com os olhos fechados, exatamente como os mortos ficam... Após outro angustiante silêncio de velório, repeti a pergunta para sua mãe em voz alta: "Você sabe o que o morto está pensando e para onde ele vai?" Ela respondeu balançando a cabeça negativamente e neste momento, ele abriu os olhos e disse que tinha muita vontade de dizer o que estava pensando e para onde gostaria de ir, mas que os mortos não podiam falar...  Então não havia como as pessoas saberem o que pensam os mortos e para onde gostam de ir...
Sugeri que fizéssemos uma nova cena, mas desta vez uma cena do nascimento de uma criança. A nova cena também foi com uma criança idealizada pelo paciente, com a ajuda de almofadas e outros objetos. Ele havia idealizado o nascimento de um irmão. Construímos um berço com cadeiras e livros e ficamos olhando para a “criança” até que resolvi perguntar para o "bebê", sobre o que estava pensando e de onde tinha vindo. Mais uma vez ficamos sem resposta nenhuma. Voluntariamente meu paciente pediu para ocupar o papel do bebê. Quando repeti a pergunta ele se mexeu muito até se levantar e dizer: “crianças não podem falar e também não podem entender perguntas”...

Lembrei-me deste atendimento que fiz anos atrás e decidi pedir autorização para a mãe de meu ex-paciente, para publicar essa pequena e significativa parte dos trabalhos. Minha intenção foi ilustrar com estes dados o maravilhoso trabalho de livre docência de Maria Julia Kovacs, que resultou no livro: "Educação para a Morte - Temas e Reflexões" - Casa do Psicólogo.  A autora defende a tese de que é possível, embora profundamente desafiadora, uma "Educação para a Morte", voltada inicialmente para profissionais de saúde e educação, e em consequência, para seus principais interlocutores: pacientes e alunos. 

Reli este livro por ter sido muito tocado por ele. Pude confirmar mais uma vez que suas ideias e considerações são  muito próximas daquilo que acredito e procuro exercer como profissional de saúde. Tenho enfrentado situações emblemáticas no consultório, onde a morte tem surgido como pano de fundo, ou como uma ameaça iminente. 
Sempre escuto com reservas quando alguém me diz: "não tenho medo da morte". É possível que eu esteja muito enganado em duvidar de tal afirmação. Talvez minha dúvida não passe de um reflexo do meu próprio medo da morte projetado pela minha desconfiança. Mas o que sei realmente é que a morte é um evento que não pode ser descrito e explicado facilmente. Essa dificuldade em se descrever e tentar explicar a morte torna-a mais terrível, misteriosa e assustadora. Quase sempre (ou talvez, sempre...) que nos deparamos com a morte, ficamos sem palavras, sem compreensão e com um profundo sentimento de vazio. O terrível e frio vazio do luto que procuramos preencher o mais rápido possível, buscando dar os significados compatíveis com nossas crenças e fantasias: “descansou, foi para um lugar melhor, está no paraíso, foi melhor assim, não havia mais nada para se fazer, viveu muito, foi feliz, tudo que era possível foi feito, etc”. Nos momentos de muita dor e de luto, procuramos dizer e ouvir coisas numa tentativa desesperada de encontrar a "melhor explicação" para algo que normalmente é inexplicável.  Enxergo o processo de luto como uma busca desesperada por algum sentido, para uma situação que parece não ter sentido nenhum.  

Algumas das explicações que as pessoas buscam dar são recheadas de argumentos lógicos e racionais. Ao contrário dos argumentos religiosos ou místicos, a racionalização parece ter um poder especial: soa como verdade e temos uma tendência maior em aceitar este tipo de argumento. Lógicos ou religiosos são tentativas de se proteger e sobreviver ao sentimento de dor e de impotência. Aqueles que lidam com a morte em seu dia-a-dia (médicos, psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, etc), estão habituados a racionalizar sobre a morte, como forma de proteção. Sem perceberem, muitas vezes acabam endurecendo o coração através de uma lógica própria, quase sempre cruel e incompreensível para seus pacientes. 
Para se compreender a dor e o sofrimento do outro, é preciso já ter sofrido e saber se colocar minimamente no lugar do outro. A capacidade de um cuidador para amar, ser generoso e humano, só surgirá se ele for capaz de sentir a dor do outro em si mesmo. Não uma dor desnorteante, mas uma dor que o incentive cada vez mais a salvar uma vida, a pesquisar uma cura, a descobrir novas e melhores maneiras de proporcionar conforto, enfim, a sempre lutar com seu paciente por uma melhor condição. Até mesmo nas situações em que todos os indícios mostrem que não haja muito que se fazer. Em outras palavras, estar junto de verdade para o que der e vier, mesmo que seja simplesmente ficar junto e ao lado. 


Para mim é muito claro que precisamos de ajuda e de muito amor para morrer, da mesma forma que precisamos de ajuda e muito amor para nascer. Nascer e morrer: "De onde viemos e para onde vamos?" Se não sabemos explicar a morte, também sabemos muito pouco para explicar a vida. Sabemos (ou imaginamos saber...) que um bebê não possui meios para lidar com os novos e terríveis estímulos inerentes ao nascimento. Ele deixa um mundo aparentemente tranquilo e aconchegante, e vem para um mundo barulhento e confuso. É uma mudança brusca que normalmente produz a ansiedade que irá acompanhar e moldar o futuro adulto. Acredita-se que seu choro inicial esteja relacionado com o medo e sensação de desamparo total, causados por estímulos até então desconhecidos e assustadores. Precisa da ajuda da mãe ou substituto para dar-lhe a confiança e ajuda necessária. Ela irá estar junto com ele, o acolherá e irá segurá-lo no colo, mostrando que aos poucos, conseguirá ultrapassar os limites que precisa enfrentar. O que sabemos é que quanto mais a mãe ou seu substituto estiverem verdadeiramente junto e ao lado de seu bebê, mais facilmente ele enfrentará a transição do nascimento e melhor será seu desenvolvimento cognitivo e emocional. 

Será a morte algo parecido? O sentimento de medo e desamparo do bebê é semelhante ao sentimento de medo e solidão do moribundo? Não sabemos e acredito que não temos como saber. Mas podemos inferir que em ambos os casos, a presença de uma "mãe" se faz necessária. Neste caso, uma "mãe" representada pela família, pelos amigos próximos e pelos cuidadores responsáveis. Estar ao lado de alguém, tanto nos momentos de prazer como nos momentos de dor, é uma prova de crescimento emocional e espiritual. 

Como defende Maria Julia Kovacs, também acredito que seja possível desenvolvermos uma educação para a morte. Uma educação baseada na tolerância, paciência e desenvolvimento da capacidade de enfrentarmos a dor. As ferramentas básicas são a generosidade e o verdadeiro amor.  Infelizmente não fazemos isso normalmente pelo enorme medo que temos em nos depararmos com a própria morte.