quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O medo de dormir e de desligar


A noite, o escuro e o sono podem ser o lugar do repouso aconchegante, da entrega prazerosa, do recolhimento regenerador. O sono é um processo psicofisiológico de vital importância para a existência, tanto quanto a nutrição. Curiosamente, durante o sono ocorrem a redução do estímulo sensorial e o aumento dos processos cerebrais que favorecem o sono. Enquanto dormimos e descansamos, nosso cérebro trabalha como nunca para permitir a ocorrência deste processo cíclico e vital. Mas nem sempre o ato de dormir é tranquilo e natural. O medo de dormir quando não superado na primeira infância, é uma sensação que se perpetuará na vida do adulto, embora essa seja uma lembrança perdida em seu inconsciente. Os bebês tem um sentimento natural de desamparo que Freud associou à primeira grande angústia que todos vivenciam no ato do nascimento. Em sequência, a imaturidade biológica da criança a torna totalmente dependente de sua mãe e de seus cuidadores, tornando em muitos casos o processo natural de separação durante o sono, uma tarefa relativamente difícil e especial. Para a criança pequena o sentimento de solidão é sempre ameaçador. Para a mãe revela-se a dor de deixar de ser um com o filho para ser um consigo mesma.
As crianças tem medo de dormir sozinhas e pedem pela vigilância e segurança dos pais enquanto dormem. A escuridão da noite traz associações com sonhos e também com pesadelos. Talvez o maior deles seja o desaparecimento da própria imagem em meio à escuridão, diante dos olhos vigilantes dos pais - "olhos que vigiam e protegem e que no escuro irão me perder." As primeiras experiências de separação (mãe / bebê) durante o processo de adormecimento, quase sempre são acompanhadas de angústia e sofrimento.  Os rituais de adormecimento (canções de ninar, contar histórias e embalar), surgem como processo de mediação, com a dupla função de afastar o perigo e ao mesmo tempo evocar proteção, em uma solução de compromisso e confiança entre mãe e bebê - "eu confio que você irá me vigiar enquanto eu estiver à mercê..." Com o processo de amadurecimento biológico e emocional, paulatinamente a criança irá introjetar as canções de ninar e as histórias que a encorajam, desenvolvendo a capacidade e o prazer de estar só - "a confiança que tinha em você, agora se transformou na confiança que tenho em mim."

Dormir pode ser assustador porque significa estar imóvel, prostrado, desligado, ausente, em estado de "não ser", sem controle. Quando se dorme, desliga-se do mundo externo e compartilhado e mergulha-se num mundo interno, solitário e misterioso. Dormir é parecido com estar morto. As comparações entre sono e morte são comuns em muitas culturas e também na mitologia - "Hypnos (a personificação do sono) é irmão gêmeo de Thanatos (o deus da morte). Para aqueles que morrem, dizemos: “descanse em paz”... "parece que está dormindo..." Para aqueles que vão dormir, dizemos: "bom descanso...”.
Muitos adultos que sofrem de insônia psicofisiológica, tem verdadeiro horror ao perceber os primeiros sinais da noite que se aproxima. O simples fato de escurecer já é suficiente para que o sujeito inicie seu calvário rotineiro de ruminações e preocupações. Muitos são os fatores que podem influenciar a insônia, mas um fator em especial costuma estar sempre presente: a angústia de ansiedade. O adulto desenvolveu uma habilidosa e poderosa defesa inconsciente em relação ao seu medo infantil: a capacidade de se ocupar excessivamente - "enquanto estou ocupado, não durmo não me entrego e não desligo". São pessoas que trabalham em excesso ou se ocupam em tempo integral para cuidar de tudo e de todos e principalmente, não se permitem errar. É um sentimento que não pode ser controlado pela pessoa causando muito sofrimento. Duas fantasias básicas estão sempre presentes: a de que a pessoa é imprescindível em tudo e em qualquer coisa e, a de que se pode controlar e antecipar tudo. O motor desse sentimento é a ansiedade extrema. A ansiedade surge como defesa ou um remédio paliativo de um sentimento de medo não superado, mas cobra um alto preço ao trazer prejuízos para a saúde física, emocional e psíquica. Reencontrar ou reconstruir suas cantigas de ninar e seus contos de fadas, talvez seja um caminho mais definitivo e mais seguro para o adulto insone.

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"Acrescento aqui (tardiamente... após a postagem realizada ontem...) um lindo poema de Winnicott, que está intimamente relacionado com o texto acima. Foi traduzido gentilmente por uma amiga querida (Laura Qualliotine) que é norte americana e fala e escreve fluentemente em português"

Sllep                                             Dorme
Let down your tap root                  Enraíza-se
Suck up the soul                            Absorve a alma
from the infinite source                 da fonte infinita
of your unconscious                      do seu inconsciente
and                                              e
Be evergreen.                              Seja eternamente vivo.  

D.W.Winnicott