quinta-feira, 26 de julho de 2012

As dores da alma


A dor é o que existe de mais terrível na condição humana, não só pelo sofrimento que causa, mas também por ser uma experiência intransferível e solitária. Intransferível porque ninguém consegue assumir o lugar do "outro" que está com dor e sofrendo. Quem está ao lado de quem sente dor, sente a dor da impotência, mas não a dor daquele que sofre. Solitária porque a dor terá que ser vivenciada somente por aquele que está sofrendo. Um bom exemplo dessa sensação de impotência: qual pai e qual mãe não gostariam de transferir para si, a dor insuportável de um filho? Se isso fosse possível, a dor transferida doeria menos que a dor de ver um filho sofrer. A dor é uma velha conhecida, desde os tempos em que fomos um bebezinho: experimentamos cólicas e outras sensações de desconforto não necessariamente físicas. Sei de muitas histórias de pais e mães que contam o desespero que sentiram porque algum filho chorou ininterruptamente, por meses. Um desespero aumentado pelo fato de bebês não falarem e não poderem apontar com precisão: "é aqui que dói". Talvez essa seja a primeira experiência do "cuidador", aquele que permanece ao lado e ajuda o "outro" que sofre a atravessar sua angústia, por verdadeira impossibilidade de assumir o seu lugar.
Tratar do sofrimento humano é a tentativa de "tirar a dor" de alguém que sofre. Quem ajuda o outro na hora do sofrimento máximo, recebe a admiração e o amor mais sincero, destinado somente aos heróis. Acredito nisto porque nos momentos em que sofremos, estamos solitários e desprovidos de qualquer atrativo. Quem fica ao lado, fica por amor verdadeiro. Os médicos fazem (ou deveriam fazer) o papel deste herói: "tiram a dor" do corpo do sujeito utilizando seu poder e sua sabedoria. O sujeito quebra um braço ou uma perna e um bom exame de imagens (raios X, tomografia, etc.), dará ao médico uma boa dimensão do dano "causador da dor". A partir dai vem o diagnóstico e os procedimentos necessários para tratar e “tirar a dor".
Mas existem outros tipos de "dor": dor de angústia, dor de medo, dor de espera interminável, dor de cotovelo, dor de amor, dor de rejeição, dor de depressão, dor de ansiedade extrema, dor de luto (como dói...), etc. Chamo essas dores de "dores da alma". As "dores” da alma são indizíveis e invisíveis, muito embora existam e sejam capazes de fazer um sujeito chegar ao ponto de suicidar-se, surtar, abandonar sua família, etc. São invisíveis porque não podem ser vistas a olho nu (ninguém enxerga uma ferida de uma mágoa), ou através de nenhum tipo de exame de imagens, ou de sangue, ou etc. E são indizíveis porque muitas vezes (quase sempre), carecem de qualquer sentido lógico ou facilmente compreensível, explicável e aceitável.  

E por serem invisíveis e indizíveis, as dores da alma não podem contar com a intervenção e ajuda de nenhum "herói externo". Somente o "herói interno”, que faz parte da alma do sujeito que sofre e que está dentro dele, é que pode enxergar, compreender e curar as dores e o sofrimento daquela alma. O psicólogo é o facilitador (ou deveria ser) que pode ajudar o sujeito a dar voz ao seu herói interior para enfrentar e tratar as dores de sua própria alma. Ele sabe "ouvir" (ou deveria saber) e procura formas e maneiras de buscar os significados das dores invisíveis e indizíveis, contidos no "dicionário misterioso" que cada alma possui. Os mistérios da alma são sorrateiros e não se permitem ser explicados facilmente. Quase sempre não possuem racionalidade e nem lógica pura e aceitável. Para tratar as dores da sua alma, o herói interior precisa fazer uma travessia solitária pela angústia que causa seu sofrimento. Solitária porque quem sofre é quem precisa realizá-la, é quem precisa "remar" em direção ao porto seguro. 
Lembro-me da lenda de Orfeu que foi o único mortal cuja música se aproximou em qualidade, da música divina. Na lendária viagem do Argo, sob o comando de Jasão, ele foi um importante "membro" da tripulação. Sempre que os heróis estavam exaustos e enfrentavam dificuldades em remar e seguir adiante, Orfeu começava a executar canções com sua lira, uma mais bela que a outra. A mágica da música recobrava o ânimo dos heróis e os remos se moviam novamente.
Quando realiza a penosa travessia, o herói "renasce" tornando-se um "verdadeiro herói". A expressão "renascer" me leva para a melhor definição de angústia que já encontrei: Rubem Alves (O Médico): "A palavra angústia nasceu do verbo latino angere, que significa apertar, sufocar. Assim, no seu nascedouro, angústia queria dizer estreiteza. O nascimento foi literalmente nossa primeira grande angústia e, pelo resto de nossas vidas, sempre que passarmos por algum canal apertado e escuro, vamos sentir novamente o que sentimos para nascer". Toda vez que "atravessamos a angústia", nascemos novamente e nos tornamos "outra pessoa". Quando conseguimos atravessar a angústia, a dor fica para trás transformada na vitamina que nos torna mais fortes e mais experientes, com um novo ânimo. A dor se transforma na sabedoria que cria novas formas, novas possibilidades e novas esperanças.    


Obs. e Dica: Assisti ao espetáculo infantil “Sonhatório” (Cia Truks – Teatro de Bonecos), que está em cartaz no SESC Pinheiros até o dia 29/07 (NÃO PERCAM!). Nosso objetivo era levar nossa filha de quatro anos para o teatro, mas fomos surpreendidos pela magia do teatro de bonecos e pela maravilha do encantamento do “faz de conta”. A peça conta a história de três loucos (sonhadores, alienados...) que esperam pelo almoço em um sanatório (daí o trocadilho com o título da peça). Enquanto aguardam pela comida, protagonizam uma verdadeira enxurrada de espontaneidade e criatividade: todos os objetos da cozinha criam vida e passam a ter papeis em histórias conhecidas pela maioria das pessoas, que tocam no fundo da alma. É mais um exemplo maravilhoso do poder que adquirimos quando decidimos “imaginar” e “brincar”, enquanto a vida nos faz “esperar por alguma coisa”.