quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Crença, contradições e crise


Há um valor inestimável nos significados e crenças que construímos e mantemos para poder interpretar a realidade e viver. Quando uma crença contradiz outra ou parece incompatível com outra, ou quando aquilo em que sempre acreditamos é contrariado por uma outra forma de conhecimento, entramos em crise e num profundo desconforto. Esse "desconforto" é chamado pela psicologia social de dissonância cognitiva, levando as pessoas a buscarem elementos de consonância, que são a mudança de uma das crenças ou das duas, para torná-las mais compatíveis e menos conflituosas. O resultado esperado é o encontro de uma saída que possa aplacar esse desconforto, trazendo de volta a harmonia de pensamentos e idéias. Essa harmonia traz algo mais do que "conforto": traz esperança e confiança para enfrentarmos as dificuldades que temos que passar pela vida.
Pois bem, existem algumas questões da nossa vida que possuem uma natureza terrivelmente desconhecida e desafiadora e, por essa razão, sua interpretação e elaboração se tornam muito difícil e muito dolorosa: a doença e a morte.
Tanto a doença como a morte podem atingir pessoas independentemente de status social, raça, credo, idade e poder econômico. Qualquer um pode ser vítima, a qualquer momento! Esse é o caráter mais assustador por ser um evento que não pode ser controlado ou manipulado. Entender, significar e dar sentido para a morte e para a doença tem sido uma necessidade e um desafio do homem através dos tempos. Não é possível descrever a morte! Não temos palavras e se torna difícil simbolizá-la,  classificá-la na rede de pensamentos e idéias e, por fim, aceitá-la. Para essa difícil tarefa somos obrigados a recorrer às nossas fantasias. religiões e crenças, como uma tentativa de fornecer algum esboço de explicação para algo que foge totalmente ao nosso controle. Algumas vezes a morte do "outro" é tida como certa, podendo ser razoavelmente identificada pelas condições em que  o "outro" se encontra (pacientes terminais ou muito velhos ou severamente doentes, etc). Outras vezes a morte do "outro" surge como uma possibilidade iminente e uma ameaça indesejada, através de um diagnóstico ruim ou de uma situação de grande apreensão. Nesses casos o sofrimento para a busca de explicações plausíveis, tanto da pessoa que é vítima de uma doença grave, como das pessoas mais próximas em sua volta, é muito grande. O caminho mais fácil é buscarmos respostas em fantasias e crenças, que normalmente buscam "adivinhar" o futuro, como forma de antecipação de uma angústia para uma possível perda. "Antecipar" surge com a falsa idéia de explicação e proteção contra um desfecho inesperado. Quando antecipamos a angústia da perda, começamos a tratar uma dor que ainda não existe, mas que poderá vir a existir e nos fazer sofrer. Talvez seja mais importante viver intensamente o momento, estando "ao lado" daquele que necessita de ajuda, de forma acolhedora, prestativa e realista. Viver um dia de cada vez e enxergar a realidade como ela é, ajuda na realização de "pequenas conquistas" que podem fazer a diferença e trazer esperança. O sentimento de esperança é suave, revigorador e nos proporciona prestar atenção e aprender com a realidade do momento, independente de qualquer que seja o desfecho. A morte continua sendo um mistério e, salvo algumas raríssimas exceções, não pode ser prevista e nem premeditada por ninguém. Perder tempo com isso pode nos tirar energias e do foco daquilo que realmente precisa da nossa atenção.  

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Tornar "familiar" o "não familiar" - Uma necessidade

Desde sempre as pessoas precisam dar significado e sentido para as coisas. Essa é uma característica histórica da espécie humana e é o que se entende por "cognição" (Aurélio: Aquisição de conhecimento - O conjunto dos processos mentais. no pensamento, na percepção, na classificação, reconhecimento, etc..). Quando um assunto é totalmente desconhecido e impossível de ser decifrado e significado, causa mal-estar e desconforto. Um desconforto que permanece até que uma maneira qualquer de elucidação e esclarecimento ocorra, transformando o "mal-estar" em "alívio". Quando a AIDS surgiu na década de 80, as pessoas ficaram perplexas e imobilizadas diante de uma epidemia que estava matando muito. Não era possível explicar, entender e classificar o que estava ocorrendo. A solução do senso comum foi classificar a AIDS como uma "peste gay", mesmo que sendo de uma forma equivocada e preconceituosa. A partir dai a nova doença pareceu ao senso comum menos ameaçadora, já que "só aconteceria" com os gays"...
Essa mesma necessidade também está presente nas questões cotidianas: alguém ouve um barulho estranho na madrugada, impossível de ser decifrado - a explicação para o fato pode variar desde qualquer fenômeno acústico, ou a presença de gente estranha na casa ou, até mesmo a "constatação" de que o local esteja mal-assombrado, caso não surja nenhuma outra explicação plausível. Não importa qual seja a explicação, o que mais importa é necessidade imperiosa de "alguma explicação". Não nos é possível viver com o "desconforto" e a "angústia" da ausência de explicação.
A necessidade de "entender", "conhecer" e "classificar" é tão imperiosa e importante para o psiquismo, que podemos adoecer gravemente quando não "digerimos" questões importantes e relevantes da vida. Até mesmo a capacidade de "perdoar" está atrelada a capacidade de "entender". Só perdoamos verdadeiramente quando realmente "entendemos", a nossa maneira, o que ocorreu. Esse pode ser um processo de minutos, horas, dias, alguns anos ou a vida toda.


Compreender a realidade é tão importante, que até mesmo na relação saúde-doença, a capacidade de "entender o que se passa comigo", pode garantir a adesão do paciente ao tratamento. Não seria exagero dizer que a melhora ou cura desse paciente, também esteja atrelada a compreensão do "que se passa comigo". Nos atendimentos de grupos de terapia é comum que algumas pessoas não consigam verbalizar e explicar suas queixas e angústias. Quando ouvem de outras pessoas relatos que trazem semelhanças com seus sintomas,  identificam-se e sentem-se aliviados e compreendidos: "Estou feliz porque agora já sei o que tenho..."; "Depois de ver tanto sofrimento, comecei a achar que o que tenho não é nada...", etc. O problema é que isso nem sempre ocorre! É muito comum dizer a um paciente que ele precisa emagrecer ou parar de fumar ou parar de beber para que possa se curar ou ter uma melhor qualidade de vida. E também é muito comum se verificar que esse paciente, mesmo com medo de morrer, não cumpra essas determinações.
Sabemos que consultas médicas oferecidas pelo SUS não costumam demorar mais que 15 minutos. Não há tempo suficiente e nem interesse em se conhecer a história do paciente. Tratamentos psicológicos profundos normalmente são descartados pelo SUS e pelos convênios médicos. Só podem ocorrer com um número limitado de sessões, em casos de solicitação médica específica. E mais uma infinidade de limitações que envolvem outras importantes e fundamentais áreas da saúde, como: fisioterapia, odontologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, etc.
Ouvir e compartilhar permite a compreensão e a disseminação do conhecimento. Quando compreendemos o que se passa, ocorre uma interligação entre cognição, afeto e ação. Mudamos o que precisa ser mudado, de forma consensual e segura. Em outras palavras, aquilo que não era familiar e causava angústia e sofrimento, agora é familiar e conhecido, causando mudança e comprometimento.