quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A princesa da água da vida

Era uma vez, quando não havia tempo, no País do Lugar Nenhum, uma pobre garota chamada Raida, que vivia solitária em uma pequena cabana.
Um dia, caminhando pelo bosque, Raida viu que um enxame de abelhas havia bandonado sua colméia, e decidiu recolher o mel.
- "Levarei esse mel ao mercado e o venderei. Com o dinheiro que conseguir procurarei melhorar de vida", disse para si mesma.
Raida correu para casa e voltou com um pote, enchendo-o de mel. Ela não sabia no entanto que a causa de sua pobreza era um gênio maléfico que tentava por todos os meios impedir que ela tivesse êxito em qualquer coisa.
O gênio acordou quando alguma coisa lhe disse que Raida estava começando a fazer algo de útil. Ele correu ao lugar onde ela se encontrava com a intenção de causar-lhe problemas. Logo que viu Raida com o mel o gênio se transformou em um galho de árvore e empurrou seu braço, de maneira que o pote caiu e quebrou, entornando todo o mel. O gênio ainda sob a forma de um galho, ria-se com satisfação, balançando-se de um lado para o outro.
-"Isto a deixará furiosa!", disse para si mesmo.
Mas ela apenas contemplou o mel e pensou:
- "Não importa, as formigas vão comer o mel, e talvez algo surja disso."
Raida tinha visto uma fileira de formigas cujas exploradoras já estavam experimentando o mel para ver se lhes seria útil. Quando começou a atravessar a floresta, no caminho de volta para sua cabana, Raida notou que um cavaleiro estava vindo em sua direção. Quando estava a apenas alguns metros dela, o homem levantou o chicote displicentemente e, ao passar, bateu num galho. Raida viu que era uma árvore de amoras, e que o golpe tinha feito com que as frutas maduras caissem no chão. Ela pensou:
- "Boa idéia. Recolherei as amoras e as levarei ao mercado para vendê-las. Talvez algo surja disso."
O gênio a viu juntando as frutas e riu-se por dentro. Quando ela terminou de encher seu cesto ele se transfromou em um burro e a seguiu silenciosamente pelo caminho que levava ao mercado. Quando Raida se sentou para descansar, o gênio sob a forma de burro aproximou-se, esfregando o focinho, e então de repente a horrível criatura se jogou sobre o cesto de amoras, esmagando-as até a polpa. O suco espalhou-se pelo caminho, e o falso burro afastou-se galopando alegremente entre os arbustos.
Raida olhou para as frutas com desânimo. Nesse momento no entanto a rainha estava passando por ali, a caminho da capital.
- "Detenham-se imdediatamente!" - ordenou aos carregadores da liteira. - "Essa jovem perdeu tudo. Seu burro esmagou as frutas e fugiu. Ela estará perdida se não a ajudarmos."
Assim foi que a rainha convidou Raida a subir em sua liteira, e rapidamente se tornaram amigas. A rainha deu uma casa a Raida, e logo ela se converteu em uma próspera comerciante, por seus próprios méritos.
Quando o gênio viu como as coisas estavam indo bem para Raida, deu uma boa examinada na casa para ver o que poderia fazer para arruiná-la. Ele percebeu que todas as mercadorias eram guardadas em um armazém atrás da casa. De modo que botou fogo na casa e no armazém, que se queimaram até os alicerces em menos tempo que se leva para contar.
Raida saiu da casa correndo quando sentiu o cheiro da fumaça, e contemplou as ruínas com pesar. Então percebeu que uma fila de pequenas formigas estava se formando. Elas carregavam grão a grão su reserva de milho, que estivera embaixo da casa, para outro local de maior segurança. Para ajudá-las, Raida ergueu uma grande pedra que cobria o formigueiro, e debaixo dela brotou uma fonte de água. Enquanto Raida a experimentava as pessoas da cidade iam se juntando à sua volta, exclamando:
- A água da vida! Isto é que foi profetizado!
Elas contarama à Raida como havia sido profetizado que, um dia, depois de um incêndio e de muitos desastres, uma fonte seria encontrada por uma jovem que não se afligia com as calamidades que lhe aconteciam. Esta seria a última fonte da vida.
E foi assim que Raida se tornou conhecida como a Princesa da Água da Vida, da qual até hoje é guardiã. Essa água pode ser bebida para dar imortalidade àqueles que a encontram, por não se impressionarem pelas calamidades que lhes possam ocorrer.

                                                                     -X-


Desejo a todos um feliz natal e um ano novo cheio de saúde, realizações e alegrias. Que possamos olhar para as nossas dificuldades e impedimentos com atenção, aprendizagem, capacidade de adaptação e reação. Agir através das "pequenas ações" que podemos verdadeiramente executar em nosso dia-a-dia. Ou seja, viver sempre no presente, aproveitando o passado como lição aprendida e o futuro como meta a ser atingida. Acredito que essa é a única forma de vencermos o "gênio maléfico", que só existe dentro de nós. Muita "água da vida" para todos nós!! Feliz 2012!

("A Princesa da Água da Vida" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 244.)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A capacidade de sentir culpa

Não existem evidências de que pessoas consideradas normais, sejam incapazes de desenvolver um senso moral que possibilite o sentimento de culpa. No entanto existem graus de sucesso ou fracasso no desenvolvimento do senso moral, tanto em adultos como em crianças. Essa característica não se relaciona em nada com a capacidade ou incapacidade intelectual do indivíduo, mas está totalmente atrelada ao seu desenvolvimento emocional.
Desde o nascimento inicia-se um complexo processo de medição e mediação de forças: os instintos que procuram pelo imperioso objetivo de se satisfazerem (pulsões do id) e, o desenvolvimento das forças de controle sobre os instintos (mediação do ego). Aos poucos e gradativamente, a criança passa a adquirir forças de controle através da introjeção ou incorporação dos limites que o ambiente lhe apresenta (a educação). A contenda entre id e ego fez com que Freud criasse um nome específico para tratar essa questão: superego. Como sei que muitos dos leitores deste blog não são psicólogos ou não possuem contato com expressões psicanalíticas, tomo aqui o cuidado de explicitar o significado dos termos que utilizei acima: "pulsão" - processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo; "id" - polo pulsional da personalidade cujos conteúdos são inconscientes; "ego" - polo defensivo da personalidade responsável pelos mecanismos de defesa do "eu"; "superego" - instância da personalidade responsável pela introjeção e interiorização das interdições parentais (Vocabulário da Psicanálise - Laplanche e Pontalis - Martins Fontes).        

Pois bem, a palavra introjeção significa uma aceitação mental e emocional de alguma dificuldade ou limite apresentado pelo ambiente. Isso ocorre durante toda a vida mas, principalmente durante o processo educacional. Neste caso a ansiedade amadureceu rumo ao sentimento de culpa, que irá se instalar na essência da intenção criminosa, antes da realização do crime em si.
Isso é muito diferente de imposição! Quando algo é imposto e inculcado, a essência verdadeira do indivíduo não se modificou! Isso pelo simples fato de não ter ocorrido a aceitação mental e emocional, ingredientes fundamentais para que o controle dos instintos possa ocorrer de dentro para fora e, de forma verdadeira. A situação contrária onde os instintos são controlados de fora para dentro, se assemelha mais a um ambiente autoritário e ditador, onde o medo de ser descoberto é o único responsável pelo mínimo convívio social existente. Basta uma pequena distração do controle externo para que o caos se estabeleça. Não somos capazes de aceitar mentalmente e emocionalmente, nada que nos seja imposto e enfiado goela abaixo. Principalmente fatos e limites que discordamos ou não aceitamos, mesmo que sejam ridiculamente coerentes e pertinentes. Em outras palavras, a incapacidade em ter limites e moralidade do adulto, provavelmente esteja relacionada com a sua impossibilidade enquanto criança, em ter desfrutado de um ambiente que lhe proporcionasse o tempo necessário para que essa difícil digestão ocorresse. Certamente existem limites para que a culpa se expresse e, há uma psicopatologia do sentimento de culpa, que pretendo abordar em uma próxima publicação. Mas a capacidade de sentir culpa mesmo quando inconsciente e aparentemente irracional, implica um certo grau de crescimento emocional, normalidade psíquica, e esperança.  

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O sentimento de culpa

No senso comum o sentimento de culpa é normalmente atribuído e relacionado ao ensinamento religioso e moral. Nessa perspectiva não fazer o mal para o "outro", passa por garantir perante os olhos do "criador" o exemplo de um bom comportamento e, talvez a garantia da "conquista de algum bônus" para o "dia do julgamento final". Sem dúvida nenhuma essa forma de pensar e sentir produz resultados sociais, que a sua maneira garantem o convívio social e um certo respeito aos limites e fronteiras entre o indivíduo e seus "semelhantes". Aqueles que sustentam esse ponto de vista acreditam que a moralidade precisa ser inculcada desde muito cedo e ensinam as crianças pequenas de acordo com essa idéia.

Para a psicanálise as fundações do sentimento de culpa estão fixadas no crescimento emocional do indivíduo e na sua capacidade em conviver socialmente, dentro de uma certa harmonia entre o "eu" e o "tu". As influências culturais são sem dúvida muito importantes e variam de lugar para lugar. Podemos verificar essa informação através das diversas variações de comportamentos, existentes entre povos e famílias de culturas diferentes.
Diferentemente da visão moralista e religiosa, podemos dizer que através de uma perspectiva "evolucionista" a capacidade de se sentir culpado é uma conquista pessoal e uma das garantias que a espécie humana necessita para sobreviver e perdurar. Se não houver respeito mútuo, a espécie humana poderá correr um sério risco de sobrevivência. E como em todo processo de amadurecimento, a moralidade também precisa se desenvolver naturalmente e de modo pessoal. Cabe ao ambiente facilitar e proporcionar os meios necessários para que isso ocorra.

E por que razão é importante distinguir entre a moralidade imposta e a moralidade naturalmente desenvolvida? Freud mencionou que a verdadeira culpa se situa na intenção inconsciente. O crime verdadeiro não é a causa do sentimento de culpa; é antes o resultado dessa culpa, que pertence à intenção criminosa (interna). Somente a culpa "legal" (externa) se relaciona com o crime; a culpa moral se relaciona com a realidade interna. Em outras palavras isso significa que há um paradoxo entre dois tipos de culpa: 1) Uma culpa externa e legal que se relaciona com o "crime" e; 2) Uma culpa moral e interna que se relaciona com uma intenção "criminosa" pré-existente. Pois bem, se levarmos em conta as diferenças existentes entre a moralidade inculcada pelo ambiente e, a moralidade que se desenvolveu naturalmente com a ajuda do ambiente, acredito que esse paradoxo seria bem menor e os resultados seriam percebidos no tipo de sociedade que indivíduos espontâneos e criativos poderiam conviver. A moralidade inculcada possui um compromisso com a aparência externa, enquanto a moralidade desenvolvida possui um compromisso com as verdadeiras intenções inconscientes.
Como um exercício de ficção, imaginem um mundo cheio de desigualdades onde ninguém respeitasse ninguém e aqueles que possuíssem poder econômico levariam grandes vantagens sobre os que não tivessem o mesmo poder: Ricos que cometeriam crimes e não seriam punidos; pessoas que comprariam orgãos para "furar" filas de transplantes e tirar vantagens; escolas boas existiriam somente para quem pudesse pagar; nações inteiras passariam fome por pura falta de interesse, responsabilidade e investimentos em infra-estrutura; uso indevido do dinheiro público e coletivo; etc. Ainda bem que essas coisas não existem e este é apenas um exercício de ficção...