sexta-feira, 25 de março de 2011

A capacidade de "estar só" e saber esperar


"A capacidade de ficar só é um fenômeno altamente sofisticado e tem muitos fatores contribuintes. Está intimamente relacionada com a maturidade emocional. - D.W.Winnicott - O ambiente e os Processos de Maturação - Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional - pg 37"

A sensação de solidão para a maioria das pessoas é percebida como algo terrível de ser suportado e superado e é uma importante fonte geradora de angústia. Angústia que normalmente está associada entre muitas outras coisas, com a ansiedade ou depressão, a intolerância e a impaciência. Provavelmente porque enquanto "se espera" por alguma coisa, se está sozinho. E "estar só" é uma sensação quase que inadmissível e muito assustadora. Os efeitos produzidos por essa "angústia da solidão" na vida cotidiana são muitos: insônia (quando se dorme se está só), dificuldade para enfrentar crises conjugais e separações (entre amigos, com os filhos crescidos, com o cônjuge, etc), inpaciência em se aguardar por qualquer coisa que não dependa da própria pessoa (resultados de exames médicos ou um simples "tempo" que alguém necessite antes de dar alguma resposta), etc. Em resposta a essa angústia, pode surgir a ansiedade como um eficiente mas terrível mecanismo de defesa. Para evitar o pavor da solidão, a pessoa passa a se "antecipar aos fatos" (característica principal da ansiedade persecutória), desenvolvendo e introjetando fantasias de onipotência de que sem sua constante atenção e vigilância, "tudo pode dar errado porque  ninguém se preocupa como eu me preocupo".  Nesse estado de "ansiedade persecutória", a pessoa não consegue mais relaxar e se restaurar, estado fundamental para que as soluções dos diversos problemas da vida cotidiana, possam surgir naturalmente. Quando digo "naturalmente", quero dizer "a seu tempo", no momento em que se é possivel. E muitas vezes esse "momento" é diferente do "momento" que fantasiamos e desejamos, pela simples razão de que outros fatores que não dependem de nós, estão em jogo.

Vivemos em um mundo carregado de estímulos "externos" que nos dão a falsa sensação de que podemos fugir da angústia de solidão. Temos academias de ginástica 24 horas, supermercados, restaurantes, boates, cinemas, internet, televisão, etc, etc, etc. Se conseguíssemos, não precisaríamos mais "parar". Coisas para se fazer, não faltam e basta "arrumar" mais uma. O ambiente social turbinado pela tecnologia nos permite "ficar ligados", 24 horas por dia. Não tenho mais dúvidas de que o estado de "hiperalerta" causador da insônia psicofisiológica, tem suas origens nesse desequilíbrio e sua "perpetuação" na infinidade de comportamentos inadequados que podemos desenvolver, graças a um ambiente social carregado de estímulos sedutores, que se sobrepõem ao conteúdo íntimo atrofiado pelo medo da solidão, que precisa se desenvolver.
A descoberta e o desenvolvimento de estímulos internos permite que nos tornemos mais "senhores" de nossas próprias vontades. Esse exercício permite que misturemos adequadamente informações que vem do mundo externo com aquelas que estão armazenadas em nossas entranhas, na forma de impressões, sensações ou idéias. Passamos a perceber a realidade mais adequadamente, com uma "segurança interna" maior. Uma vez "seguros", desenvolvemos a capacidade de ficarmos só, de tolerar o diferente e "aguardar" quando se é necessário. Esse exercício constrói um caminho de mão-dupla que sempre inclui o "eu mesmo", o "outro" e o "inesperado", produzindo soluções e rerspostas para os problemas da vida.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O Tsunami do Japão e o Sentimento de Desamparo do Mundo

Na última semana fomos todos pegos de surpresa com os terríveis acontecimentos ocorridos no Japão. Um terromoto de grandes proporções seguido de maremoto da mesma grandeza e agressividade, matou milhares de pessoas, destruiu cidades inteiras e deixou a míngua aqueles que conseguiram sobreviver. As imagens de prédios enormes balançando como se fossem de papel, casas e lojas caindo, ondas enormes invadindo cidades e destuíndo e arrastando tudo pela frente, deixaram uma inequívoca sensação de angústia, medo, incerteza e compaixão. Olhando as imagens que a internet e a TV mostraram, é muito difícil entender que pessoas que estavam em sua rotina diária, trabalhando, namorando, tristes ou alegres, de uma hora para a outra, ou estavam mortas ou desabrigadas ou separadas definitivamente de seus entes queridos. Como num piscar de olhos, suas vidas mudaram para sempre, sem seu consentimento ou desejo, sem qualquer preparação ou planejamento. Foi visível que esses eventos mexeram muito com todos nós. Nos dias que se seguiram aos acontecimentos, enquanto tomava meu cafézinho na padaria nos intervalos dos atendimentos de meu consultório, percebi que quando a TV mostrava novas imagens, o volume das conversas diminuia e todos passavam a prestar atenção nas novas notícias.
Recentemente também houve o terremoto que matou milhares de pessoas no Haiti e que também mobilizou o mundo e trouxe muito sentimento de compaixão. Mas agora foi diferente... As pessoas se sentiram mais atingidas, mais envolvidas e mais mexidas. E por que há essa diferença? Creio que as consequências de um terremoto no Haiti, são de uma certa forma e maneira mais "esperadas" dentro do imaginário coletivo. A maior parte das pessoas encara o Haiti como um país muito pobre, sem infra-estrutura, com muita miséria, etc, etc e etc. Uma catástrofe num lugar assim, só pode ter consequências como as que houveram. Cansei de ouvir comentários semelhantes naquela ocasião. Isso é muito diferente do Japão, uma potência econômica e tecnológica que é admirada, que foi capaz de se recosntruir rapidamente após o final da 2ª grande guerra, que tem um povo disciplinado e culto, etc, etc e etc. Um país que ocupa um lugar de destaque naquilo que mais valorizamos como modelo de civilização e desenvolvimento: poder econômico e alta tecnologia. Mesmo com tudo isso, boa parte do país foi destruída, como se fosse de papel. Nada e nenhuma tecnologia impediu ou foi capaz de antever o que estava por vir. Foi como se nossos "deuses" mais contemporâneos e poderosos (a alta tecnologia e o poder econômico), tivessem acabado de demonstrar que possuem "pés-de-barro".

O reflexo desses acontecimentos trouxe para a superfície um sentimento muito estrutural, que lutamos contra o tempo todo e que buscamos transformar e domar, desde a mais tenra idade: o "sentimento de desamparo". Um sentimento que quando se instala, produz angústia sem fim, depressão, incerteza e medo. Ver o "sentimento de desamparo" dos japoneses que sobreviveram e não possuem mais casa, trabalho, família, etc, é muito assustador. Percebemos que na realidade não temos nenhum tipo de controle ou regra sobre os eventos que a natureza pode ou não, produzir. Mesmo tendo alcançado um enorme desenvolvimento tecnológico, a civilização não está à salvo! "Tudo pode estar por um segundo..." já dizia Gilberto Gil em sua música maravilhosa (Tempo Rei).
Esses eventos nos remeteram ao temor maior, que começamos a sentir a partir do momento que nascemos: O temor do desamparo, que produz a terrível angústia da incerteza da sobrevivência. Foi no momento do nascimento que enfrentamos o nosso primeiro sentimento de angústia. Li num livro maravilhoso de Rubem Alves ("O Médico" que escreveu em homenagem a seu filho), a melhor definição de angústia que já conheci: angústia significa "caminho estreito" - o nascimento é o nosso primeiro "caminho estreito" a ser percorrido. É o nosso primeiro grande desafio a ser enfrentado. A sensação de desamparo foi definida por Freud como: "O estado do lactente que, dependendo inteiramente de outrem para a satisfação de suas necessidades (sede, fome), é impotente para realizar a ação específica adequada para pôr fim a tensão interna (produzida pela fome, pela sede e pelo medo). Para o adulto, o estado de desamparo é o protótipo da situação traumática geradora de angústia." Freud observou que um bebê humano tem uma total dependência com relação a sua mãe/cuidador. Essa vivência irá influenciar de forma decisiva a estruturação do psiquismo e suas consequências na vida do adulto.

Diante de tanta morte e destruição, prefiro enfrentar a sensação de desamparo e de angústia pensando na vida e não na morte. Em um novo nascimento, em uma nova etapa a ser percorrida pela civilização. Vou procurar ser humilde e não me esquecer que não podemos controlar nada nesse mundo, alem de nós próprios (e isso com muitas ressalvas...). Talvez a melhor forma de se lembrar disso seja viver o presente intensamente, mesmo que ele seja muito doloroso e, participar ativamente e da melhor maneira possível, dentro do grande grupo que forma a espécie humana. Não vivemos e não podemos viver sozinhos.

sexta-feira, 4 de março de 2011

"O Casal Silencioso" - Ou, o silêncio dos casais...

Era uma vez um homem e uma mulher que tinham acabado de se casar. Ainda vestidos em seus trajes nupciais se acomodaram em seu novo lar mal o último convidado partiu.

- Querido - disse a jovem senhora, - vá fechar a porta que dá para a rua. Ficou aberta.
- Fechar a porta? Eu? - falou o noivo. - Um noivo em seus trajes esplêndidos, com um manto de valor inestimável e uma adaga cravejada de pedras? Como alguém poderia esperar que eu fizesse uma coisa dessas? Você deve estar fora do juízo. Vá você mesma fechá-la.
- Ah é? - gritou a noiva. - Você pesnsa que sou uma escrava? Uma mulher bonita e gentil como eu, que usa um vestido da mais fina seda? Você acha que eu me levantaria no dia do meu casamento para fechar a porta que dá para uma via pública? Impossível.

Ficaram em silêncio por um minuto ou dois, e a mulher sugeriu que poderiam solucionar o problema com uma aposta. Combinaram que o primeiro que falasse fecharia a porta.
Havia dois sofás na sala e a dupla se sentou, frente a frente, olhando-se em silêncio.
Ficaram assim durante duas ou três horas. Enquanto isso um bando ladrões passou por ali e viram que a porta estava aberta. Esgueiraram-se para dentro da casa silenciosa, que parecia deserta, e começaram a recolher todos os objetos que pudessem carregar, fosse qual fosse o seu valor.
O casal de noivos os ouviu entrar, mas um achava que era o outro quem devia cuidar do assunto. Nenhum dos dois falou, nem se mexeu, enquanto os ladrões iam de um quarto a outro , até que finalmente chegaram à sala e não perceberam, de início, a sombria e estática dupla.
O casal no entanto continuava sentado, enquanto os ladrões carregavam todos os valores e enrolavam os tapetes sob os pés dos esposos. Confundindo o idiota e sua obstinada mulher com maniquins de cera, despojaram-nos de suas jóias. Mesmo assim a dupla continuava muda.
Os ladões se foram. A noiva e o noivo continuaram sentados toda a noite, e nenhum deles desistiu. Ao amanhacer um policial em sua ronda viu a porta aberta e entrou. Indo de um aposento para o outro, chegou finalmente ao casal e perguntou-lhes o que tinha acontecido. Nem o homem e nem a mulher se dignaram a responder.
O policial pediu reforços. Muitos defensores da lei chegaram e todos foram ficando cada vez mais furiosos diante do silêncio total, que lhes parecia, obviamente, uma afronta calculada.
O oficial encarregado perdeu finalmente o controle e ordenou a um de seus homens:
- Dê um tabefe ou dois nesse homem para que recupere a razão.
Diante disso a mulher não conseguiu conter-se:
- Por favor, senhores guardas - choramingou, - não batam nele. É meu marido!
- Ganhei! - gritou imediatamente o imbecil. - Você vai fechar a porta!
                                                -X-

("O Casal Silencioso" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 202.).