sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Matriz de Identidade de Moreno - "Corpo-disperso e Corpo-parcial"

Após meu´último texto sobre o espetáculo de Ivaldo Bertazzo (O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies), resolvi reler "A Dimensão e o Significado do Corpo no Psicodrama" de Alfredo Naffah Neto - (Editora Agora - 1990). Por sua profundidade, capacidade de fundamentação filosófica e clareza em informar, sem dúvida esse é um dos livros que considero como indispensável para qualquer estudante de psicodrama. Naffah descreve a forma como o psicodrama dimensiona a existência humana: "um grande drama representado por múltiplos atores e cujo enredo lhes é, via de regra, inconsciente." Moreno dizia que: "isso se assemelha a uma peça teatral, onde o diretor escolheu um cenário, um figurino e uma série de cenas brilhantes e sedutoras, representadas por tipos, heróis, máscaras e diálogos sobre a eternidade, a fim de distrair o nosso espírito dos acontecimentos da terra. E assim funcionam milhões de grupos sociais, famílias, escolas, fábricas, igrejas,, nações, etc." Compara esse movimento a uma "sina" que compromete a existência humana a esse entrecruzamento de grupos sociais. A partir dai,  descreve-o como um "ser-em-relação" e como um "ser-no-mundo", recuperando o movimento existencialista de Heidegger.
Pois bem, a visão terapêutica desse movimento procura facilitar para que esses "atores inconscientes", possam descobrir-se como parte do drama, cuja autoria não participaram mas no qual vivem lançados pelo simples fato de existirem - desde o início - no interior das instituições humanas. Drama que se repete por gerações e cuja matriz pode ser encontrada num certo tipo de estrutura sócio-econômica e política, da qual a família se faz representante primeira. O grande palco utilizado por esses "atores inconscientes", é o corpo.. A constituição, transformação e até mesmo a perda desse corpo, se dá através de um processo histórico, descrito por Moreno quando fala sobre o desenvolvimento infantil, como fases da Matriz de Identidade.

Moreno chamou de "corpo-disperso" o corpo do recém-nascido, que ainda está formando o seu "eu". A identidade da criança com o mundo que a rodeia, ainda é total. Não consegue se distinguir da mãe e nem dos objetos que entra em contato. Ainda não percebe seu próprio corpo como sua própria identidade. Concentra-se em ações momentâneas como: mamar, urinar e defecar, existindo tão somente (o corpo) como função fisiológica, ou "papel psicossomático". Este tipo de vivência pela criança, proporciona um "extase existencial". A partir dessas vivências, passa a identificar determinadas zonas corporais e o momento em que entram em funcionamento. Nessa fase o corpo vivido é um "corpo-parcial", sem unidade no tempo e no espaço. Somente após a maturação do sistema nervoso e do reconhecimento que receberá das pessoas que a rodeiam, é que a criança começará, aos poucos, a unificar essas vivências parciais e momentâneas, conquistando uma vivência unitária do próprio corpo. O reconhecimento da criança enquanto um ser singular, está diretamente relacionado a constituição de sua identidade, ou da capacidade da criança em se reconhecer como um "corpo singular", que é capaz de expressar seus próprios anseios e desejos. Nessa fase, embora a criança ainda esteja vivenciando seus momentos de "corpo-disperso e corpo-singular" enquanto papel psicossomático, ela já possui um papel social: o papel de filho, no qual foi lançada desde o primeiro momento de vida, mesmo sem saber. Neste momento da existência da criança, seu destino está atrelado às maiores ou menores possibilidades de sua família. E a transformação e maturação desse corpo, também está diretamente associada aos resultados desse período.
Em minnha próxima postagem continuo com as fases de desenvolvimento.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies de Ivaldo Bertazzo

Tive a incrível sorte de assistir a tempo (a última apresentação foi em 17/10), o espetáculo da Cia Teatro e Dança Ivaldo Bertazzo "O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies". Mais uma vez me senti surpreendido pela beleza, sensibilidade, bom humor e profundidade com que Ivaldo realiza seus trabalhos. De uma forma poética e bem humorada, a coreografia  linda, bailarinos fantásticos e uma trilha sonora capaz de fazer rir e chorar, Ivaldo propõe uma reflexão sobre o corpo humano e seus movimentos. Busca no movimento das espécies, associações com as diversas fases da existência humana, propondo que de uma certa forma, a espécie humana é a única que tem dentro de si todas as outras espécies. No início somos peixes que nadam dentro da barriga da mãe. Depois do nascimento rastejamos como répteis até engatinharmos ou "andarmos de quatro", como os quadrúpedes. O último estágio é o das aves, mas nesse momento o movimento de "voar" só pode ocorrer no mundo da poesia, das idéias, dos sonhos e da imaginação. De acordo com Ivaldo, se não atingirmos esse "estágio do vôo" (da capacidade imaginativa e poética), adoecemos e morremos cedo.
Os diversos movimentos de todas as espécies que "já estão" de uma certa forma dentro das pessoas, podem vir a ser acessados através do processo de reeducação do movimento, que visa ampliar o leque de possibilidades de nos postarmos no mundo. Em uma entrevista dada no programa Metrópolis da TV Cultura, Ivaldo menciona que a postura vertical está cristalizada no homem. Menciona que o bicho homem faz tudo verticalmente e do ponto de vista da saúde (que normalmente tem uma visão evolucionista...), há discussões que conduzem a se atribuir a causa de diversas patologias, ao "excesso de postura vertical": hérnia de disco, hemorróidas, apnéia do sono, joanetes, artrose nos joelhos, prisão de ventre, etc.

Alem de todas características artísticas e poéticas maravilhosas do trabalho de Ivaldo, meu encantamento também se deu pela correspondência teórica de sua visão, com alguns preceitos básicos do psicodrama e da saúde psíquica e existencial: espontaneidade e criatividade como únicas alternativas de se revelar o drama interno e insonsciente. Para o psicodrama o "corpo" é o fundamento existencial onde se apoiam os "diversos atores internos", que interpretam os papéis representativos do "drama sempre inconsciente", a ser vivido por cada pessoa. Esse corpo está cheio de amarras e surge de forma mecanizada, repetitiva e alienada, sempre a serviço desses papéis. Essas amarras foram uma resposta a sua incapacidade de transformar fantasias e pressões, ocorridas num passado distante, mais precisamente nas fases do desenvolvimento orgânico e psíquico (ele já foi peixe, réptil e quadrúpede...), mas que hoje ainda permanecem, tornando-o uma espécie de "porta-voz" desse drama inconsciente. Essa mecanicidade que está cristalizada nesse "corpo", surge como uma barreira que reforça a ilusão de que "não há mais nenhum outro movimento possível". Esse é o "mal maior" responsável por tanto sofrimento psíquico, nos dias de hoje.  Acreditamos piamente que não há mais nada a se fazer...
Alem de todos os problemas de saúde já citados, a chance desse corpo em não atingir o "estágio das aves" e desenvolver sua capacidade poética e imaginativa, é muito grande. Penso que a reeducação do movimento surge como uma das formas desse corpo ampliar seu repertório e seu leque de opções, sendo ao mesmo tempo, o terreno fértil para o surgimento da espontaneidade e da criatividade.

Links para se saber mais sobre Ivaldo Bertazzo: http://twitter.com/ivaldoBertazzo e http://www.facebook.com/profile.php?id=100001249255005#!/profile.php?id=100000053182212

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Insônia Crônica 4 - Emergência e psicoterapia de apoio

A insônia e seus efeitos iniciais produzem a sensação de que a pessoa conseguirá resolver sozinha essa dificuldade. Muitas vezes isso não acontece e depois de passar muito tempo (as vezes muitos anos) buscando alternativas e lutando contra, é que o sujeito vai finalmente buscar ajuda especializada. E a maior parte dessa demanda se concentra nos ambulatórios do serviço público de saúde, que não está preparado e não tem condições de dar assistência psicológica integral. A opção mais adequada é a utilização da psdicoterapia de apoio, combinada com a clínica interdisciplinar. Como já dissemos antes, a psicoterapia de apoio é orientada para a mudança de comportamento e alívio de sintomas, utilizando-se em especial de técnicas sugestivas, persuasivas, reeducativas e tranqüilizantes. Essa é a forma de tratamento psicológico mais utilizada em pacientes que sofrem de insônia, em função da "emergência"  com que normalmente esses casos se apresentam. Independentemente do tipo de abordagem escolhida pelo(a) psicoterapeuta (psicanalítica, psicodramatista, comportamental, etc...), o que se procura fazer num primeiro momento, é tirar o paciente da crise aguda em que se encontra.

São muitas as abordagens psicoterápicas que produzem resultados positivos no apoio e acolhimento de pacientes acometidos por insônia. As terapias comportamentais são as mais utilizadas e mais reconhecidas cientificamente, por terem realizado ao longo de muito tempo, inúmeras pesquisas com publicação de seus resultados em editoras especializadas. O psicodrama que é a minha abordagem, está sendo avaliado cientificamente através do meu trabalho de mestrado pela UNIFESP. Parte desse trabalho foi realizado em 2009, com  ensaio clínico que envolveu 150 voluntários. Neste momento os dados estão sendo avaliados estatisticamente e, embora ainda necessitem de comprovação, posso dizer de antemão, que os resultados tendem a se assemelhar ao das terapias comportamentais. Pretendo publicar futuramente, um texto específico sobre a utilização do psicodrama no tratamento da insônia crônica, abordando tanto a psicoterapia de apoio, como a psicoterapia profunda.

Os fatores que reconhecidamente podem manter a insônia, são: hábitos inadequados de sono, ausência de uma rotina regular para dormir e acordar e crenças e atitudes disfuncionais sobre o sono (ruminações e preocupações que ocorrem antes e durante a hora de se dormir). As terapias psicológicas comportamentais adotam algumas estratégias que normalmente são bem sucedidas e, visam "quebrar" esse círculo vicioso. Vale lembrar que esse círculo vicioso inclui fatores fisiológicos, psicológicos e comportamentais, tornando sua modificação muito difícil, o que acaba por aumentar em muito a "resistência" do insone. As técnicas mais utilizadas são:
  1. Restrição de sono: A restrição de sono consiste na diminuição do tempo gasto na cama, em que o insone procurou em vão, "pegar no sono". Ou seja, se o sujeito não tem sono, ele deve sair da cama e de preferência, do seu quarto, só retornando no momento em que sentir sono.
  2. Controle de estímulos: Visa estabelecer uma nova associação cognitiva entre a cama e o quarto, com o sentimento de sono. O insone costuma "ruminar" e permanecer acordado, em sua própria cama. Isso faz com que mantenha uma associação "falsa", de que "ir para a cama", significa "ficar preocupado".  Estabelecer essa nova associação implica na implantação de uma nova e rigorosa rotina, que inclui: dormir e acordar, sempre no mesmo horário; evitar cochilos durante o dia; usar a cama e o quarto somente para dormir evitando atividades incompatíveis com o sono como assistir TV, ler e comer; sair da cama após 20 minutos sem conseguir dormir; ir para a cama somente quando estiver cansado e com sono.
  3. Treino em relaxamento: Esse procedimento tem como objetivo a redução da tensão, do estresse e da ansiedade. Tratam-se de técnicas específicas que são praticadas nas sessões de terapia, como: relaxamento muscular progressivo; treinamento autógeno (foca a redução do "acordar"); treino de imaginação; meditação; parada de pensamento, etc.
  4. Terapia Cognitiva: Implica em fornecer informações básicas sobre o sono normal, as diferenças individuais sobre a necessidade de sono e suas diferenças durante a vida. O foco aqui está em modificar crenças e atitudes consideradas "disfuncionais" para com o sono. A infofrmação ajuda o insone a ter mais consciência sobre seus sintomas, diminuindo muito, o excesso de preocupação.
  5. Higiene do sono: Procedimentos gerais que podem ser adotados pelo insone e visam proporcionar uma boa noite de sono: práticas saudáveis como dietas e exercícios, utilização ou não de substâncias, etc; fatores ambientais como luz e temperatura; informações sobre os benefícios de se manter uma boa rotina de sono.
Estudos tem revelado que de 70% a 80% dos pacientes com insônia primária, tiveram benefícios com o tratamento cognitivo comportamental. Esses benefícios podem ser sintetizados em: aumento médio do tempo total de sono entre 30 e 45 minutos; aumento da satisfação com o próprio sono; redução dos sintomas psicológicos; redução do uso de medicação hipnótica.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Insônia Crônica 3 - Fazer psicoterapia para tratar a insônia, é eficiente?

Nos últimos dias recebi uma infinidade de perguntas com relação a eficiência da psicoterapia, tanto voltada para o tratamento específico de insônia, como também para outros fins. Procurei fazer uma síntese e elegi as que de uma certa forma representam todas as outras. Ai vão alguns exemplos: "O que seria fazer tratamento psicológico para combater a insônia? Ficar falando da própria vida e dos problemas, resolve o problema de insônia? Falar sobre si com os amigos, num boteco, não é mais barato e a mesma coisa? Se ao invés de ir ao psicólogo(a), ir conversar com o padre, não tem o mesmo efeito? Psicoterapia não é recomendado só para quem não é "bem resolvido"? Se o médico acertar o meu remédio e ele fizer efeito, já não é suficiente?"  Fica evidente através dessas e muitas outras perguntas, que existe uma dúvida e um certo desconforto em se buscar ajuda psicológica. Seja ela motivada por uma queixa de insônia, ou de qualquer outra natureza. Penso que em primeiro lugar precisamos procurar responder a seguinte pergunta: O que é psicoterapia? É uma forma de tratamento que visa terminar ou diminuir o sofrimento psíquico de um indivíduo, através do acolhimento, da continência e de técnicas específicas, chamadas de "técnicas mentais". Podemos dividir a atuação psicoterápica em duas frentes: A psicoterapia de apoio que é orientada para a mudança de comportamento e alívio de sintomas, utilizando-se em especial de técnicas sugestivas, persuasivas, reeducativas e tranqüilizantes. Já a psicoterapia profunda é orientada para as questões inconscientes e mais profundas do indivíduo, recorrendo às técnicas catárticas que variam da psicanálise clássica ao psicodrama. Espera-se que com o uso dessas técnicas, crie-se um ambiente facilitador para que o indivíduo consiga através do autoconhecimento, dissipar ou reelaborar suas angústias e desconfortos, prováveis fontes desse sofrimento psíquico ou desequilíbrio emocional.

Em outras palavras, a "cura" para a psicoterapia tem um significado muito diferente, por exemplo, da "cura" de uma cirurgia, onde um tumor tenha sido estirpado. Neste segundo caso, a "cura" levou de volta o paciente, ao seu estado "de normalidade", anterior à sua doença.  Para a psicoterapia, a "cura" é a atenuação ou o dissolvimento do sofrimento psíquico, permitindo que o indivíduo possa vivenciar um estado de equilíbrio emocional, onde suas potencialidades possam ser expressadas e realizadas. Isso significa que uma pessoa que tenha predisposição fisiológica para a insônia, continuará tendo a mesma predisposição, mesmo que venha a fazer psicoterapia. Mas provavelmente aprenderá a conviver com isso, aprendendo a respeitar os limites de sua história e de sua constituição. Uma psicoterapia é uma experiência que transforma, mas ao custo de uma mudança. Quando se termina um processo terapêutico, o sujeito não está sem um tumor ou sem uma dor, o sujeito está "outro sujeito".
Um outro fator importante que deve ser considerado, é a confiança ou desconfiança em determinado tipo de tratamento. Já ouvi queixas de pacientes que tinham receio em tomar medicações receitadas por seus médicos. Nesses casos, quase sempre as medicações, ou não produziam o efeito desejado, ou se produziam, eram resultados muito singelos. O mesmo acontece na psicoterapia. Se não há confiança no profissional ou no tratamento, seus resultados são inócuos. Esse fenômeno é muito bem explicado pela psicanálise, em obras inteiras que referem-se a esse assunto como "o estudo da transferência". Para falar sobre a "transferência", seria necessário se escrever muito, em várias postagens e esse não é meu objetivo aqui. Mas a "transferência" pode ser traduzida aqui como a "confiança" depositada no profissional ou no tratamento que está sendo proposto. Ela não se define ou pode ser alcançada de modo racional e objetivo. Ela simplesmente acontece, ou não acontece. Estudos científicos que tratam esse assunto já demonstraram que "o remédio"  receitado por um médico que goza da "confiança" de seu paciente, tem um resultado muito mais efetivo do que se fosse ao contrário.

Voltando a psicoterapia para tratamento de insônia: Pois bem, sabe-se que somente o uso de medicações para combater a insônia, muitas vezes produz um resultado abaixo do esperado. Isso pode ser demonstrado pelos inúmeros casos de pacientes que se vêem obrigados a procurar por seus médicos, solicitando  a troca da medicação, ou o aumento da dosagem. Isso pode ocorrer em função de dois fatores potenciais: 1) A origem multifatorial da insônia - como já dissemos antes, existem fatores fisiológicos, psicológicos e comportamentais que podem  estar influenciando o quadro de insônia. Por exemplo, um paciente toma a medicação para a insônia, mas não modifica seus hábitos tornando seu efeito ao longo do tempo, abaixo do esperado.
2) O resultado relativo de algumas medicações, quando são utilizadas por um longo tempo, podem causar dependência e também o indesejado efeito "rebote" (efeito rebote significa que o remédio passa a fazer efeito contrário ao seu propósito inicial). Ao mesmo tempo, é impossível se aplicar técnicas psicológicas que estimulem o autoconhecimento e o amadurecimento emocional, em pacientes que estão em um quadro agudo de depressão, ansiedade e insônia. Sem a ajuda do "remédio", o tratamento psicológico não fará progressos e nem se estabelecerá, pela impossibilidade do paciente e do terapeuta, em  construir um vínculo que permita esse trânsito (a transferência relatada acima).
Nesses casos a busca mais importante a se fazer, é a busca pela remissão dos sintomas, da maneira mais rápida possível. É preciso se ajudar o cliente a sair de um quadro agudo, buscando diminuir rapidamente,  seu sofrimento. Nesse momento a psicoterapia torna-se "de apoio", combinando sua atuação (que pode ter várias formas e maneiras, dependendo de cada caso), com o uso de medicação prescrita por um médico especializado. Uma vez "estabilizado" o quadro, a psicoterapia pode (ou não) evoluir para uma segunda etapa, onde questões inconscientes mais profundas tornam-se mais evidentes e passam a ser o foco do trabalho.

Essa combinação tem produzido efeitos significativos em pacientes que sofrem de insônia. Os resultados mais conhecidos passam desde a a redução de dosagens das medicações prescritas, até a abolição de seu uso, por completo. Para quem quiser saber mais sobre esse assunto, há um artigo científico inteiro que demonstra que a psicoterapia combinada com o uso de medicação benzodiazepínica, produziu os melhores resultados em pacientes acometidos por insônia crônica (Dose-Response Effects of Cognitive-Behavioral Insomnia Therapy: A Randomized Clinical Trial - Jack D. Edinger, PhD1,2; William K. Wohlgemuth, PhD3; Rodney A. Radtke, MD2; Cynthia J. Coffman, PhD1,2; Colleen E. Carney, PhD2). 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Insônia Crônica 2 - Automedicar-se não é eficiente!


Recebi duas perguntas na publicação anterior (insônia crônica 1), sobre o uso e eficiência de medicamentos para a insônia. Foram questões muito pertinentes que acredito que serão respondidas através desse texto. O tratamento de insônia deve primeiro ser bem diagnosticado por um médico especializado no sono, e somente depois é possível se determinar a opção mais adequada de tratamento a ser seguida. Como já foi dito antes, muitas vezes o médico precisa realizar um diagnóstico diferencial para investigar com maior precisão suas causas e consequências. Problemas psiquiátricos como: depressão, ansiedade e distúrbios do humor, podem estar influenciando, diretamente no sono. Outros distúrbios do sono como apnéia, alterações do ritmo circadiano, SPI (síndrome das pernas inquietas) e parassonias (sonambulismo, bruxismo, etc), podem estar presentes, sendo "mascarados" pela sensação de insônia. Questões ambientais e comportamentais como: má higiene do sono, hábitos sociais incompatíveis e má qualidade de vida, são fatores que também podem estar influenciando decisivamente. Todos esses fatores se misturam dinamicamente e tornam muito complicados, não só o diagnóstico e o tratamento, mas também a própria percepção que o insone tem do seu problema. Imagino que essa "confusão" e percepções distorcidas, associadas ao hábito sócio-cultural da automedicação, sejam os fatores que mais pesam sobre os altos custos sociais e econômicos que dissemos anteriormente. Por essa razão, considero útil afirmar que a auto-medicação é uma prática perigosa e quase sempre, pouco eficiente. Um bom exemplo do perigo da auto-medicação: Se uma pessoa ronca muito ou tem apnéia e não sabe disso por nunca ter feito uma avaliação ampla com um especialista, pode estar cometendo um grave erro ao ingerir "calmantes para dormir". Alem de continuar acordando durante a noite, isso irá piorar o seu quadro de apnéia, pondo o sujeito em grande risco. Pessoas que sofrem de distúrbios psiquiátricos como depressão, ansiedade, etc, precisam ter sob rigoroso controle as dosagens de medicações que devem faser uso, sob risco de não resolver adequadamente seus problemas originais, alem da própria insônia. Somente um médico especialista pode fazer essa avaliação de maneira correta e segura e, se for o caso, prescrever a medicação e a dosagem adequadas.

São muitos os fatores que devem ser levados em conta para que uma avaliação seja feita de maneira ampla e segura. O histórico médico individual do insone associado ao seu modo de vida, deve ser levado em consideração quando se avalia corretamente a insônia e seus sintomas. Existem pessoas que possuem uma "propenção fisiológica" para a insônia. Isso sugere que a insônia possa estar associada ao fato de que o indivíduo que sofre de insônia, tenha uma "propensão" para despertar "antes" do período preferido de sono. As pessoas que possuem essa "propenção" por exemplo, são mais sensíveis a ingestão de cafeína em excesso. Para elas, tomar um cafezinho após as 18:00 pode ser decisivo para que não consigam dormir a noite. Outros comportamentos noturnos como: comer em demasia, assistir TV no quarto, ouvir música na cama, etc, também produzem um efeito devastador no sono dessas pessoas. O mais interessante, é que normalmente o insone não sabe que tem essa "propensão" fisiológica. E por essa razão passa a considerar que a sua falta de sono precise do uso incondicional de alguma medicação. Não necessariamente, isso é verdade.

Quase sempre essa propensão é combinada com uma característica emocional, marcada pela "ruminação e preocupação" em excesso, que acaba por reforçar o quadro de insônia. Os especialistas chamam esse tipo de insônia de "insônia cognitiva". A insônia cognitiva precisa de três fatores determinantes para se instalar: 1) Fator de predisposição: indivíduos dados a ruminar e se preocupar são mais sensíveis aos episódios estressores da vida; 2) Fator de precipitação: problemas e dificuldades que a vida traz em determinados momentos, que induzem a pessoa ao estado de "alerta" contínuo (chamado de "hiperalerta" pelos especialistas), que acaba levando o sujeito ao despertar somático; 3) Fator de perpetuação: a pessoa passa a se preocupar excessivamente com o "dia seguinte" e com sua dificuldade em dormir, pasando a ter crenças e comportamentos disfuncionais (disfuncionais para com o sono...), criando um ciclo vicioso que piora cada vez mais esse quadro. Estar em alerta permanentemente, alem de muito desgastante, produz uma "atenção seletiva" permanente (uma atenção voltada para a preocupação constante). Como consequência passa a ter uma percepção distorcida da realidade. Sem ter controle direto sobre isso (esses episódios ocorrem sem que a pessoa tenha controle ou consiga fazê-los parar), a pessoa passa a monitorar o ambiente sempre a procura de "sinais ameaçadores" (barulhos, relógio, ruídos, etc). Me lembro de uma paciente muito divertida, que dizia "odiar" os sabiás por eles cantarem por volta das 3:00 da manhã, impedindo-a de conseguir dormir. A busca incessante por "sinais ameaçadores", também é dirigida para o próprio corpo do insone (sensações corporais, temperatura, etc). Já ouvi relatos de um paciente que ficou aterrorizado com "os barulhos" de sua barriga, durante a noite. Com tudo isso ocorrendo, a hora de dormir passa a ser enxergada como "a hora do calvário", porque o sujeito já inicia o seu processo de "ruminação" e de preocupação com o seu próprio sono, na medida em que o horário de ir para a cama vai se aproximando. Para fugir desse sofrimento e dessa angústia, passa a incorporar outras atividades como forma de "passar o tempo" de falta de sono. São hábitos e atividades normalmente incompatíveis com o sono que o insone pratica na própria cama: assistir TV, ouvir música, falar no telefone, trabalhar no computador, comer, etc. Essas atividades fazem com que a angústia do insone melhore, mas prejudicam em muito a possibilidade de haver um sono restaurador.

Como no dia seguinte o cansaço e a sensação de sonolência são inevitáveis, o sujeito passa a evitar tarefas e relações que lhe exijam muito esforço, por absoluto cansaço e falta de energia. Os nervos ficam "à flôr da pele" e a sensação de que a vida fica mais "sofrida", são aumentadados exageradamente. O insone passa a ter a crença de que não é compreendido pelas outras pessoas, aumentando a auto-comiseração e a sensação de impotência frente aos problemas da vida. Sua auto-estima diminui sensivelmente e esse é um bom exemplo da "visão distorcida da realidade", que mencionamos acima. Esse processo passa a ocorrer na forma de um ciclo vicioso e com o passar do tempo, a pessoa acometida por insônia não sabe mais diferenciar o que está acontecendo consigo. Os hábitos adquiridos como forma de defesa contra a angústia da falta de sono, são introjetados e cristalizados, transformando-se em rituais quase que imutáveis. O insone passa a ter a ilusão de que não consegue mais viver sem eles. Em outras palavras, o insone "desaprendeu" (no próximo texto essa expressão poderá ser melhor compreendida) que o sono é simplesmente o ato de ir para a cama e dormir.

Em resumo, dissemos que a insônia tem origem multifatorial (várias causas), e que seu diagnóstico precisa de uma avaliação ampla e segura, que deve ser realizada por um médico especializado no sono. Suas causas podem estar atreladas a três fatores que se combinam: 1) fatores de predisposição (propenção fisiológica que reforça o traço de "hiperalerta", fatores psicológicos que reforçam a tendência do sujeito em "ruminar" e se preocupar em demasia com os problemas da vida, e sociais onde o indivíduo desenvolve hábitos e modos de vida incompatíveis com uma boa noite de sono); 2) fatores de precipitação (eventos estressantes que fazem parte da vida de qualquer pessoa, que para o insone tem um efeito devastador); e 3) fatores de perpetuação (comportamerntos que o insone desenvolve para compensar sua angústia e sua falta de sono - a prática de ficar acordado na cama, lendo, assistindo TV, ouvindo música ou qualquer outra atividade incompatível com o sono).

A auto-medicação é um grande equívoco por muitas vezes não produzir o efeito esperado, e também por ser uma prática perigosa. As terapias que mais tem produzido efeitos positivos no tratamento da insônia, são a combinação entre os tratamentos farmacológico e psicológico. A clínica "interdisciplinar" procura tornar as pessoas "menos dependentes" de medicações, sempre que possível, por ser uma prática mais saudável. Em minha próxima postagem pretendo falar com maior profundidade sobre o tratamento psicológico da insônia.