quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A Princesa Obstinada - FELIZ 2011!

"Um certo rei acreditava que o correto era o que lhe haviam ensinado e aquilo que pensava. Sob muitos aspectos era um homem justo, mas também uma pessoa de idéias limitadas.
Um dia reuniu suas três filhas e lhes disse:

- Tudo o que tenho é de vocês, ou será no futuro. Por meu intermédio vieram a este mundo. Minha vontade é o que determina o futuro de vocês três, e portanto o seu destino.

Obedientes e persuadidas da verdade enunciada pelo pai, duas das moças concordaram. Mas a terceira retrucou:

- Embora a minha posição me obrigue a acatar as leis, não posso acreditar que meu destino deva ser sempre determinado por suas opiniões.
- Isso é o que veremos - disse o rei.

Determinou que prendessem a jovem numa pequena cela, onde ela penou durante alguns anos. Enquanto isso o rei e suas duas filhas dilapidaram bem depressa as riquezas que de outro modo também seriam gastas com a proncesa prisioneira.
O rei disse para si mesmo:

"Essa moça está encarcerada não por vontade própria, mas sim pela minha. Isto vem provar, de maneira cabal para qualquer mentalidade lógica, que é a minha vontade e não a dela que está determinando seu destino."

Os habitantes do reino inteirados da situação de sua princesa, comentaram:

- Ela deve ter feito ou dito algo realmente grave para que um monarca, no qual não descobrimos nenhuma falha, trate assim a sua própria filha, semente viva de seu sangue.

Mas ainda não haviam chegado ao ponto de sentir a necessidade de contestar a pretensão do rei de ser sempre justo e correto em todos os seus atos.
De tempos em tempos o rei ia visitar a moça. Conquanto pálida e debilitada pelo longo encarceramento, ela se obstinava em sua atitude.
Finalmente a paciência do rei chegou ao seu derradeiro limite:

- Seu persistente desafio - disse a filha - só servirá para me aborrecer ainda mais, e aparentemente enfraquecerá meus direitos caso você permaneça em meus domínios. Eu poderia matá-la, mas sou magnânimo. Assim, me limitarei a desterrá-la para o deserto que faz a divisa com meu reino. É uma região inóspita, povoada somente por animais selvagens e proscritos excêntricos, incapazes de sobreviver em nossa sociedade racional. Ali logo descobrirá se pode levar outra existência diferente daquela vivida no seio da família; e se a encontrar, veremos se a prefirirá à que conheceu aqui.

O decreto real foi prontamente acatado, e a princesa conduzida a fronteira do reino. A moça logo se encontrou num território selvagem e que guardava uma semelhança mínima com o ambiente protetor em que havia crescido. Mas bem depressa ela percebeu que uma caverna podia servir de casa, que nozes e frutas provinham tanto de árvores como de pratos de ouro, que o calor provinha do sol. Aquela região tinha um clima e uma maneira de existir próprios.

"Aqui - murmurou para si própria a princesa desterrada - há uma vida cujos elementos se integram, formando uma unidade, mas nem individual ou coletivamente obedecem às ordens de meu pai, o rei."

Certo dia um viajante perdido, casualmente um homem muito rico e ilustre, encontrou a princesa exilada, enamorou-se dela e a levou para seu país, onde se casaram.
Passado algum tempo os dois decidiram voltar ao deserto, onde construíram uma enormne e próspera cidade. Ali, sua sabedoria, recursos próprios e sua fé se expandiram plenamente. Os "excêntricos" e outros banidos, muitos deles tidos como loucos, harmonizaram-se plena e proveitosamente com aquela existência de múltiplas facetas.
A cidade e a campina que a circundava se tornaram conhecidas em todo o mundo. Em pouco tempo eclipsara amplamente em progresso e beleza o reino do pai da princesa obstinada.
Por decisão unânime da população local, a princesa e seu marido foram escolhidos como soberanos daquele novo reino ideal.
Finalmente o pai da princesa obstinada resolveu conhecer de perto o estranho e misterioso lugar que brotara do antigo deserto, povoado, pelo menos em parte, por aquelas criaturas que ele e os que lhe faziam coro desprezavam.
Quando, de cabeça baixa, ele se acercou dos pés do trono onde o jovem casal estava sentado e ergueu seus olhos para encontrar os daquela soberana, cuja fama de justiça, prosperidade e discernimento superava em muito o seu renome, pôde captar as palavras murmuradas por sua filha:

- Como pode ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino e fazem sua própria escolha.

                                 -X-

Acredito que o natal e a véspera de ano novo seja um período que faz as pessoas ficarem mais sensíveis e abertas para o novo. Percebo que "se pede" mais coração e menos razão. Não quero "interpretar" isso nesse momento: primeiro porque não tenho vontade; segundo porque também percebo esse desejo em mim, talvez até mais do que nas pessoas...  Talvez seja por essa razão que nas últimas semanas, ao invés de textos mais técnicos e filosóficos, postei três contos de fada que, junto com outros materiais, me serviram como fonte de inspiração para o trabalho que desenvolvo com grupos em meu consultório. Acho que foi a forma que encontrei para enviar mensagens carregadas de significado, mas de uma maneira lúdica e menos racional.
Desejo a todos um ano novo cheio de criatividade, espontaneidade, magia, aventura, bom-humor, saúde, garra e muita "obstinação"! Que todos nós possamos identificar no fundo de nossos corações, os conteúdos e sonhos verdadeiros, capazes de dar luz e sentido a existência, tornando-nos mais íntegros, saudáveis e felizes. 

Entro em férias pelos próximos 20 dias e volto a postar semanalmente nesse blog, em 21/01/2011.

("A Princesa Obstinada" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 99.).

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Homem mais feliz do mundo

"Um homem que vivia numa situação bastante confortável foi um dia visitar um sábio que tinha fama de possuir grandes conhecimentos.

- Grande sábio - disse ele, - não tenho problemas materiais. Contudo não estou satisfeito. Durante anos tenho procurado ser feliz, encontrar uma resposta para meus pensamentos, estar em paz com o mundo. Por favor, aconselhe-me: como posso curar-me desse mal?
- Meu amigo - respondeu-lhe o sábio, - o que está oculto para uns é evidente para outros, o que é evidente para uns está oculto para outros. Tenho a solução para o seu mal, embora não seja um remédio comum. Você deve viajar a procura do homem mais feliz do mundo. Quando encontrar deve pedir sua camisa e vesti-la.

Incansável, aquele buscador começou a procurar homens felizes. Um por um, econtrou-os e interrogou-os. Todos disseram:

- Sim, sou feliz, mas há alguém mais feliz do que eu.

Depois de viajar de país em país, por muitos e muitos dias, chegou a um bosque onde, diziam, vivia o homem mais feliz do mundo. Ouviu o som de uma risada através das árvores e apressou o passo até chegar perto de um homem que estava sentado numa clareira.

- Você é o homem mais feliz do mundo, como dizem? - perguntou-lhe.
- Sou com certeza - disse-lhe o homem.
- Meu nome e minha condição são tais e tais. Meu remédio receitado pelo melhor sábio, é usar a sua camisa. Por favor, poderia dá-la para mim? Em troca lhe darei tudo o que possuo.

O homem mais feliz do mundo olhou-o bem de perto e riu. Riu e riu.
Quando o homem se acalmou um pouco, o inquieto viajante, um tanto aborrecido com sua reação, disse:

- Você deve estar fora de seu juízo para rir de um pedido tão sério.
- Quem sabe? - disse o homem feliz. - Mas se você apenas tivesse tido o trabalho de olhar teria visto que não possuo camisa alguma.
- E agora, que faço então?
- Agora você ficará curado. Esforçar-se por alguma coisa inatingível predispõe a prática de conseguir o que é necessário, como quando um homem reúne todas as suas forças para saltar sobre um rio como se fosse mais largo do que realmente é. Certamente ele atravessa esse rio.

Então o homem mais feliz do mundo tirou o turbante cuja ponta escondia o seu rosto. O homem inquieto viu que ele não era outro senão o grande sábio que o tinha aconselhado no início.

- Por que não me disse isso quando fui procurá-lo a tantos anos? - perguntou o viajante, desconcertado.
- Porque naquela época você não estava pronto para compreender. Precisava de certas experiências, e elas tinham que lhe ser proporcionadas de um modo que garantisse que você passaria por elas."

                                     -X-

Desejo a todos um feliz natal cheio de alegria, de aventuras, de curiosidade com a vida e com as coisas, de energia para enfrentar os obstáculos e tudo isso com muita saúde. Que todos nós passemos pelas experiências que forem necessárias para nos deixar "prontos" para a felicidade plena, com coragem e com bom humor.

("O Homem mais feliz do mundo" - Histórias da Tradição Sufi - Rio de Janeiro - 1993 - Edições Dervish, página 185.).

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Lenda das Areias - A história da trajetória de um rio, que nos faz pensar na vida

"Vindo desde as suas origens nas distantes montanhas e após passar por inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera as outras barreiras o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que mal suas águas tocavam a areia, nela desapareciam.
Estava convicto, no entanto, de que fazia parte de seu destino cruzar aquele deserto, embora não conseguisse fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída do próprio deserto arenoso, sussurrou:


- O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio.


O rio objetou estar se arremessando contra as areias, sendo assim absorvido, enquanto o vento podia voar, conseguindo dessa maneira atravessar o deserto.


- Arrojando-se com violência como vem fazendo não conseguirá cruzá-lo. Assim desaparecerá ou se transformará num pântano. Deve permitir que o vento o conduza a seu destino - disseram as areias.
- Mas como isso pode acontecer?
- Consentindo em ser absorvido pelo vento.


Tal sugestão não era aceitável para o rio. Afinal de contas, ele nunca fora absorvido até então. Não desejava perder a sua individualidade. Uma vez a tendo perdido, como se poderá saber se a recuperaria mais tarde?


- O vento desempenha essa função - disseram as areias.
- Eleva a água, a conduz por sobre o deserto e depois a deixa cair. Caindo na forma de chuva, a água novamente se converte num rio.
- Como é que posso saber que isto é verdade?
- Pois assim é, e se não acredita não se tornará outra coisa senão um pântano, e ainda isto levaria muitos e muitos anos; e um pântano não é certamente a mesma coisa que um rio.
- Mas não posso continuar sendo o mesmo rio que sou agora?
- Você não pode, em caso algum, permanecer assim - retrucou a voz. - Sua parte essencial é transportada e forma um rio novamente. Você é chamado assim ainda hoje por não saber qual é a sua parte essencial.


Ao ouvir tais palavras, certos ecos começaram a ressoar nos pensamentos mais profundos do rio. Recordou vagamente um estágio em que ele, ou uma parte dele, não sabia qual, fora transportada nos braços do vento. Também se lembrou, ou lhe pareceu assim, de que era isso o que deveria fazer, conquanto não fosse a coisa mais natural.
Então o rio elevou seus vapores nos acolhedores braços do vento, que suave e facilmente o conduziu para o alto e para bem longe, deixando-o cair suavemente tão logo tinham alcançado o topo de uma montanha, milhas e milhas mais longe. E porque tivera as suas dúvidas o rio pôde recordar e gravar com mais firmeza em sua mente, os detalhes daquela sua experiência. E ponderou:


- Sim, agora conheço a minha verdadeira identidade.

O rio estava fazendo o seu aprendizado, mas as areias sussurraram:

- Nós temos o conhecimento porque vemos essa operação ocorrer dia após dia, e porque nós, areias, nos estendemos por todo o caminho que vai desde as margens do rio, até a montanha.

É por isso que se diz que o caminho pelo qual o Rio da Vida tem que seguir em sua travessia, está escrito nas areias."

                                                                        -X-

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O Poder Invisível

Recentemente estive relendo e estudando uma série de atendimentos familiares realizados nos últimos anos, tanto por mim como por colegas ou por relatos em livros e textos de estudos de caso. Na imensa maioria dos casos,as queixas iniciais tinham um traço muito comum: a) pais autoritários/ausentes e  b) mães mártires que ficaram com a responsabilidade de garantir a sobrevivência moral e econômica da família. É surpreendente a incrível semelhança que a maior parte desses atendimentos tinham em comum: homens com um forte perfil machista, praticamente ausentes do processo familiar (até mesmo das sessões de psicoterapia) e, mulheres abnegadas e determinadas a fazer de tudo para superar os obstáculos enfrentados por sua família. O obstáculo maior: o autoritarismo e a ausência paternas, tanto no sentido econômico como no sentido moral e afetivo. Isso significava que no início do processo terapêutico, a família buscava por ajuda para vencer o grande mal representado pelo papel masculino. Quando digo a família, quero dizer "mãe e filhos". Mas em boa parte dos casos, quando o processo de terapia começava a se aproximar da revelação do drama, surgiam evidências de que um outro poder também atuava negativamente sobre a família, alem do poder machista e autoritário representado pela figura paterna. Um poder que era invisível, mas que também era controlador, autoritário e até mesmo, violento: o poder materno. São muitos os exemplos que poderia dar, mas me lembro de um caso em que um filho mais velho de 17 anos apresentava grande dificuldade em conseguir amigos com a mesma idade. Era muito tímido e só conseguia se relacionar com meninos muito mais novos que ele. Também pairavam suspeitas sobre sua sexualidade, uma vez que nunca tinha apresentado ou comentado sobre a existência de alguma namorada. Nas queixas iniciais o pai aparecia como o grande responsável pelo comportamento embotado do garoto. Isso porque sempre se dirigia a ele (quando se dirigia...) de forma agressiva e violenta, acusando-o de incapaz e efeminado. No desenvolvimento do processo da terapia, durante uma dramatização do cotidiano da família, revelou-se que o rapaz dormia na mesma cama da mãe, no lugar de seu pai, que trabalhava até altas horas da madrugada. Permitir que seu filho adolescente dormisse na mesma cama, era uma forma de lhe transmitir um carinho que ele não podia contar através de seu pai. Esse era um comportamento tido como normal e corriqueiro na família, inclusive pelo próprio pai. Sem perceber e sem se dar conta, acabou assumindo um papel impossível de ser representado: o de substituto de seu pai e de "salvador" de sua pobre mãe. Suas questões pessoais e biológicas foram totalmente relevadas. Não é difícil perceber que um rapaz de 17 anos não pode ter ereções e nenhuma expressão sexual, dormindo ao lado da própria mãe. É mais fácil se infantilizar para conseguir sobreviver a isso. No entanto, a queixa que persistiu e que se tornou mais evidente, foi a queixa do pai autoritário/ausente, que ajia com truculência.

O autoritarismo masculino presente historicamente na estrutura familar, tem contribuído para camuflar um poder invisível e dissimulado da figura materna. A figura de um pai autoritário/ausente, serve como referência negativa e como bode espiatório para a maior parte dos problemas estruturais de uma família. É comum escutarmos queixas que apontam para a responsabilidade paterna em relação aos problemas da família. Queixas que são reforçadas e fundamentadas pelo autoritarismo, pelo machismo e muitas vezes por um comportamento até mesmo violento. Ao mesmo tempo em que essa imagem terrível do masculino se reforça, uma outra imagem feminina de abnegação e dedicação heróica, irradia sua presença no espaço familiar. Essa irradiação ocupa totalmente o espaço, se amoldando, se instalando e cristalizando sua presença no espaço interno de cada membro da família. Uma presença que se reforça por um ideário da mãe-martir/dominadora. Surge de forma camuflada e mascarada, o poder materno. Esse domínio se estabelece pelas sombras, uma vez que o reconhecimento formal do "chefe-da-casa" tem sido historicamente destinado ao papel paterno. Socialmente essa tem sido a única forma do feminino se estabelecer e ser aceito formalmente. Obviamente esse modelo se encaixa mais perfeitamente nas gerações de nossos pais. Um dos grandes problemas é que esses papéis ainda se mantém intactos, mesmo depois da indiscutível emancipação feminina.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um Drama Familiar Contemporâneo - A transmissão e perpetuação de papéis

A evolução tecnológica tem provocado um fenômeno sócio-econômico que é motivo de aflição para muitas famílias. As máquinas e os computadores estão ocupando os postos de trabalho no lugar das pessoas. Podemos ter uma rápida constatação deste fenômeno quando somos obrigados a fazer qualquer coisa em uma agência bancária. Isso para os raros casos em que não podemos resolver problemas pela internet, no conforto do escritório ou de casa . Em uma agência bancária, quase tudo pode ser feito através de caixas eletrônicos, dispensando a necessidade de atendentes. Me lembro de um trabalho que participei como consultor, realizado em uma pequena indústria de portas e janelas de ferro no interior de Goiás. O dono daquela pequena indústria havia acabado de realizar um investimento em máquinas modernas, que ocupavam metade de sua fábrica. Na outra metade havia mantido o modo de produção original, onde todas as atividades eram realizadas por funcionários e ferramentas antigas. A diferença era absurda! A parte da fábrica que funcionava com as máquinas modernas produzia simplesmente dez vezes mais, por muito menos da metade do custo da outra parte, que mantinha os funcionários trabalhando da maneira antiga. Era apenas uma questão de tempo para que o dono dessa pequena indústria conseguisse financiar mais máquinas modernas e, demitisse a maior parte dos funcionários que ainda restavam na produção. Sabemos que hoje em dia, cada vez mais existem menos empregos, em função do avanço tecnológico inexorável. Essa é uma verdade indiscutível e é uma das grandes questões sócio-econômicas a serem enfrentadas pelo mundo contemporâneo, tanto do ponto de vista dos meios de produção, quanto do ponto de vista dos reflexos dessa transformação na psique e na saúde.
De um modo geral, ao verificarmos listagens de cargos e salários de grandes empresas, infelizmente ainda se pode verificar que existe uma distinção sócio-econômica entre homens e mulheres. Mulheres que ocupam os mesmos cargos que homens, embora realizem as mesmas funções e atividades, possuem um salário menor. Essa é a peça que faltava para a montagem de um drama contemporâneo: Os poucos postos de trabalho disponíveis são normalmente preenchidos por mulheres, em função de seus salários serem menores e mais vantajosos para os empregadores. Com isso é muito comum hoje em dia, verificarmos haver um grande número de homens desempregados, sendo sustentados por suas esposas ou companheiras. Homens em casa, com poucas perspectivas e fora do modelo de produção oficial e, mulheres fora de casa, trabalhando e participando do modelo de produção oficial. Esse cenário tem sido um terreno fértil para o surgimento de quadros de depressão, ansiedade e muita desarmonia na família, tanto para homens como para mulheres.

A família possui uma matriz sociométrica e sociodinâmica poderosa, que embora já tenha se modificado externamente e socialmente com os avanços e conquistas da mulher (avanços inquestionáveis), em seu imaginário interno, essa matriz ainda permanece quase que intocada: O homem como chefe da casa e o responsável oficial pelo provimento da família e, a mulher como dona-de-casa e responsável pela manutenção do lar. Um drama antigo que apresentava um homem orgulhoso, cego e ausente na educação dos filhos, devido sua posição oficialmente superior. Uma mulher mártire que praticamente educava sozinha seus filhos, alem de lidar com todas as responsabilidades do dia-a-dia da casa, sem ter com isso, nenhum reconhecimento oficial. No primeiro caso a atuação masculina é recheada de símbolos heróicos e de conquistas, reconhecidas pela ordem estabelecida. Já a mulher era associada ao trabalho braçal da casa: lavar, passar, arrumar, manter a ordem, etc. Um papel relegado pela ordem oficial estabelecida. Trata-se de um "drama familiar" que já existia a um bom tempo e que foi incrementado por uma incrível inversão de papéis. Uma inversão de papéis circunstancial que não modificou e transformou o drama! Internamente os homens continuam buscando cumprir seu papel de provedores e heróis, mas não conseguem o espaço social para a realização dessa fantasia. Ao mesmo tempo as mulheres continuam tentando se libertar da tirania masculina, embora já não dependam mais  economicamente de seus maridos. Pois bem, isso significa que homens e mulheres ainda permanecem atrelados ao mesmo drama anterior, com o incrível reforço dos mesmos papéis de sempre: A mulher teve exacerbado seu papel de mãe-mártire, agora reconhecido e reforçado socialmente pelos meios de produção formal (trabalha o dia inteiro e ainda realiza as tarefas da casa). O sentimento de repulsa à histórica tirania masculina reconhecida por um autoritarismo visível, contundente e, às vezes, até mesmo violento da figura paterna, permanece e torna-se bode espiatório de todos os males. É muito comum hoje em dia ouvirmos histórias familiares com esta, em que a mulher que trabalha e sustenta sua família ainda aparece como mártire, repetindo um papel que aprendeu com sua mãe, que aprendeu com a mãe dela, que apredeu com a mãe dela, etc.
Já o homem veste esta carapuça e ao invés de procurar representar novos papéis transformadores, gasta seu tempo e sua energia tentando reconquistar o território perdido. Isso significa que muitas vezes continua ausente na família, com a desculpa de que continua sendo o chefe da casa, mesmo estando fora da produção formal. Sem perceber muito bem, agora representa o papel de um chefe de família fracassado. Um papel que traz sofrimento para si e para os que estão a sua volta, produzindo doença, discórdia e depressão.
Pretendo continuar com esse assunto em meu próximo texto, falando do poder materno.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Síndrome das Pernas Inquietas (SPI) - "A Doença da Aflição"

Em meus atendimentos no ambulatório da Neuro-Sono do Hospital São Paulo, era comum encontrar pessoas que apresentavam sintomas de um forte desconforto nas pernas. Quando contavam suas histórias, diziam que inicialmente associavam esses sintomas a problemas vasculares ou ortopédicos. Diziam que após realizarem várias consultas com médico especialista vascular e a realizarem vários exames, não chegavam a nenhum diagnóstico conclusivo. Para essas pessoas que procuravam por uma explicação sobre o que estavam sentindo e o que as fazia sofrer, não ter um diagnóstico era o pior dos mundos. Isso porque mesmo "sem um diagnóstico", continuavam apresentando sintomas de desconforto e sentiam-se incompreendidas. As famílias e outras pessoas que às cercavam, passavam a questioná-las; afinal de contas vários exames e várias consultas já haviam sido realizadas e nada era encontrado - "Só pode ser da sua cabeça..." O sentimento de incompreensão aumentava causando depressão e angústia.
Recentemente descobri que pessoas próximas e  amigas também sentiam-se da mesma forma e que apresentavam sintomas muito parecidos. E da mesma maneira sentiam-se incompreendidas por não sentirem a continência, tanto de médicos, como da maioria das pessoas mais próximas. Em todos esses casos, quando essas pessoas ouviram sobre a doença que tinham (SPI) e puderam buscar o tratamento adequado, os resultados foram de alívio e de transformação da vida, para melhor. Por essa razão resolvi escrever e fornecer informações básicas sobre a SPI, uma desordem neurológica que acomete 5% da população geral, e até 10% da população com mais de 65 anos.

A SPI é uma desordem neurológica geralmente associada com sensações estranhas e perturbadoras: de formigamento, ou de picada, ou de queimaduras nos membros inferiores. Há um alívio quando a pessoa se movimenta, em especial quando movimenta as pernas. Os sintomas se tornam mais evidentes durante os momentos de repouso e são muito presentes durante a noite. A forte necessidade de movimentar-se para obter o alívio dos sintomas, impede que a pessoa consiga dormir e repousar. Por essa razão a SPI é considerada uma desordem relacionada ao sono. As vezes sou perguntado se pessoas que tem o tique nervoso de balançar rapidamente as pernas, são portadoras de SPI. Esclarecendo: pessoas muito ansiosas que balançam as pernas por tique vervoso,  não são portadoras de SPI. O portador de SPI tem necessidade de movimentar-se com o único objetivo de aliviar os desagradáveis sintomas e desconforto, que sentem nas pernas.
Relatos de pacientes descrevem variadas sensações perturbadoras:  "insetos rastejadores dentro das pernas; gastura; tensão incômoda e desagradável; comichão interno; sensações dolorosas." Embora seja mais comum se ouvir queixas relacionadas aos membros inferiores, também existem casos dos mesmos sintomas e sensações, nos braços. Quando isso ocorre, pode ser um indício de que a doença já esteja em um estágio mais severo. Em casos mais graves, pacientes relatam não conseguir fazer grandes viagens de carro, ônibus ou avião, em que deverão permanecer por muito tempo sentadas. Uma constatação curiosa é que nessas situações, percebeu-se que os sintomas reduzem significativamente seus efeitos, quando a pessoa mantém seu estado de alerta e atenção, nos momentos em que precisa ficar parada. Como estratégia para manter-se em alerta, entretem-se com  atividades como jogos de computador ou até mesmo "conversando consigo mesma". Ao mesmo tempo essa é uma constatação de que os sintomas estão diretamente associados com a diminuição de atividades do sistema nervoso central, como descansar e dormir, por exemplo. É como se a pessoa estivesse "proibida de repousar". Por essa razão a SPI também é conhecida como "a doença da aflição".

Em mulheres a SPI costuma surgir pela primeira vez, durante a gravidez. Há uma forte relação com histórico familiar e nesses casos é comum seu surgimento antes dos 30 anos. A intensidade da doença e a severidade dos sintomas, costuma aumentar com o avanço da idade. Sua etiologia está associada com a herança genética e também com anemia férrica, ou deficiência de ácido fólico (deficiência de ferro no sistema nervoso central). Seu diagnóstico é clínico e pode ser realizado por um médico especializado no sono. O tratamento pode ser ou não ser farmacológico, de acordo com a avaliação realizada pelo médico especialista. Não é incomum se verificar desequilíbrios emocionais como depressão e ansiedade em portadores de SPI. O dia-a-dia com sintomas produz efeitos complicados na vida afetiva e social: queixas dos companheiros de cama, esquiva de programas sociais em que é comum se ficar sentado ou parado, como ir ao cinema ou teatro, etc.
Há um excelente programa de acompanhamento psicológico realizado pelo ambulatório da Neuro-Sono da UNIFESP. Toda semana são atendidos e avaliados vários grupos de pacientes, com resultados muito satisfatórios. Para quem desejar ou necessitar, recomendo que se procure informações mais detalhadas sobre diagnóstico e tratamento através do site da ABRASPI (Associação Brasileira da Síndrome das Pernas Inquietas) http://www.sindromedaspernasinquietas.com.br/, ou enviando e-mail diretamente para: sindromedaspernasinquietas@gmail.com

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Corpo-do-Outro

Buscando fazer um fechamento com os outros textos onde tratei sobre a Matriz de Identidade, considero importante fazermos uma síntese de tudo o que foi dito. A Matriz de Identidade de Moreno descrita por Naffah Neto, mostrou que na primeira fase do desenvolvimento infantil surge o "corpo-disperso", onde a criança não se diferencia do mundo que a cerca. Após a identificação da criança com certas partes corporais suas, acentuada pelas necessidades fisiológicas, surge o "corpo-parcial", ainda sem unidade no tempo e no espaço. Lentamente, na medida em que ocorre a maturação do sitema nervoso e, através do "reconhecimento" (aceitação) recebido pelo mundo que a cerca, a criança desenvolve o "corpo-parcial". Quando passa a reconhecer-se através do espelho, surge o "corpo-unitário" em que a criança finalmente atinge a "identidade do eu". Uma identidade que ainda está incompleta pela ausência da identidade social, que são os papéis e posições que ainda não possui no seio da família. Sem essa incumbência social e vivendo a margem dessa ordem e dessa cultura, põe-se como "pessoa privada", acreditamdo-se como o centro do universo (fase do egocentrismo acentuado). Essa fase irá terminar lentamente, na medida em que os limites impostos pela educação dos pais e pela realidade da vida, demonstrarem que o seu poder é limitado. A criança entende esses limites como sendo uma ameaça verdadeira ao seu poder. Buscando reconquistar o poder perdido, responde à essas ameaças e limitações que lhe são impostas, imitando e identificando-se com os adultos. Nesse jogo lúdico onde "inverte papéis com seus pais", coloca-se no lugar dos adultos e desenvolve a capacidade de catalisar o imaginário e transformá-lo em ação, unindo fantasia e realidade numa ação espontânea de conquista simbólica do mundo. Nessa fase (a terceira) transforma seu corpo num "agente de conhecimento", abandonando a marginalidade e o isolamento anterior, restritos a um mundo privado. Essa é a ponte para descobrir-se como "corpo-cultural" ou "corpo-simbólico". Isso quer dizer que a criança descobre-se como pessoa singular, ao mesmo tempo em que descobre "o outro", criando e transformando novos papéis e localizando sua posição real neste mundo.

Quando esse estágio do "corpo-simbólico" não é alcançado e nem atingido, a criança permanecerá existindo como "corpo-parcial" ou "corpo-pessoal", dependendo da fase da Matriz da Identidade onde seu desenvolvimento se perdeu e se cristalizou, transformando-se em "conserva" (Moreno chama de "conserva" toda ação estagnada ou não-refeita e recriada). Podemos citar exemplos onde o "corpo-parcial" aparece claramente nas somatizações do histérico e na vivência de desproteção do fóbico. Já o "corpo-pessoal" demonstra claramente a falta de limites culturais e voluntarismo excessivo, que estão na descrição e definição da personalidade psicótica. Para Moreno, a existência psicótica sequer chegou a se constituir como "corpo-próprio" . Desde muito cedo foi transformado em um receptáculo de um drama familiar, representando um "corpo-negado", "corpo-nadificado", "corpo-alienado", destinado a dramatizar o seu próprio assassinato como ser humano. Isso significa que, por ser excluído naturalmente de sua função social primeira no seio da família, seu corpo é possuído por um drama alheio, que representa o "Outro". Drama alheio que o acompanhará por toda a vida.
Dessa forma o corpo do psicótico representa o "corpo-do-Outro". O psicótico vive o seu drama que oscila entre o imaginário e o real (delírios e alucinações), não somente porque lhe falte contato com a realidade, ou porque perceba menos ou de forma distorcida aquilo que vive. Na definição moreniana, o psicótico rompe com a realidade, por percebê-la demais! Faz isso e aje como um subversivo, para colocar em xeque a ordem cultural instituída, onde seu discurso é marginalizado e o seu corpo amarrado e negado. Sua imaginação é o seu exílio do mundo dos homens, seu discurso é uma denúncia daquilo que o acorrenta. Como "corpo-do-outro" é a expressão mais adequada do drama coletivo.

Para o psicodrama o corpo é descrito como um fundamento existencial, como um grande cenro virtual de ações. O "ser-em-situação" descrito pelo existencialismo de Bergson, ocorre através do uso do corpo que também funciona como uma ponte de ligação entre o passado, o presente e o futuro, entre o real e o imaginário. É através do corpo que expressamos nosso modo de ser, nosso posicionamento neste mundo, nossa forma de amar e de se relacionar. Moreno acrescenta que o corpo é um núcleo constantemente estimulado pelas diversas tramas que a sociedade lhe impõe, ou pelos reflexos imaginários onde busca algum refúgio. Está sempre em situação, sempre visando o mundo, mesmo que aja de forma alienada, mesmo que seus olhos só se abram para o que ele queira ver, ainda que existindo como um mero papel.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Matriz de Identidade de Moreno -O Reconhecimento do Eu e do Tu

A etapa de reconhecimento do eu é descrita por Moreno como a segunda etapa do desenvolvimento infantil. Nesse momento a criança passa a perceber-se como uma pessoa singular, podendo reconhecer-se através da imagem de si mesma, refletida pelo espelho. É um processo lento e gradativo, pois inicialmente a criança não se reconhece diante do espelho. Somente aos poucos é que, através da correspondência entre a vivência interna do corpo e sua aparência externa, por meio de uma simetria que aparece através dos movimentos realizados diante do espelho, o corpo conquista a sua unidade. O primeiro e grande espelho da criança até então, eram os olhos de sua mãe, através de um olhar que não era neutro e que revestiu a corporeidade da criança com o desejo do adulto: exigências e expectativas ao seu papel na família ("...olha como ele é sério... tem o jeito do avô; ...é a cara do tio; ...já mostrou que tem personalidade; etc) . Nesta fase a criança depende totalmente desse "papel" que lhe foi atribuído por aqueles que a cercam. Espera-se e é muito importante, que esse "papel" seja revestido pelo reconhecimento  da criança, por sua mãe principalmente, e também por todos que a cercam. Em outras palavras, isso pode ser chamado de "aceitação": "nos te aceitamos, te valorizamos e te desejamos nessa família e neste mundo". A percepção desse sentimento de "aceitação" pela criança, influenciará sua personalidade e sua capacidade de amadurecimento emocional, pelo resto de sua vida. Percebendo que é amada e desejada, terá a sensação de que pode se arriscar e buscar alternativas para as questões da vida que irão surgir, através de seu próprio esforço, de modo seguro, espontâneo e criativo. Saber esperar, saber ouvir os outros e ao mesmo tempo saber se colocar com suavidade nos contextos que a vida cotidiana exige, depende totalmente do amadurecimento emocional do adulto. Nos estudos que ando desenvolvendo sobre a ansiedade excessiva, que apresenta comorbidades relacionadas a insônia e também ao pânico, tenho percebido que pode haver uma forte relação entre os sintomas apresentados pelos pacientes, com essa base afetiva que permite e dá condições ao amadurecimento emocional. Basta lembrar que pessoas muito ansiosas tem muita dificuldade em ouvir e em esperar.
A partir dessa conquista que envolve os primeiros passos da construção de sua própria identidade, a criança descobre-se como uma pessoa distinta das outras pessoas. O corpo dessa fase passa a ser chamado de "corpo pessoal". Sua identidade ainda não está completa, por ainda não exergar-se com uma identidade social própria, ou seja, ainda não se vê ocupando uma posição e um papel no seio da família, através dela mesma. O desenvolvimento de seu ego ainda depende do papel que lhe foi atribuído através das expectativas de sua mãe e do reconhecimento primeiro. E por ainda viver à margem da ordem e da cultura, o corpo põe-se como "pessoa privada", que tem como principal característica, ver-se como o centro do universo - fase muito conhecida pelo egocentrismo acentuado da criança. Há uma relação entre a capacidade que a criança desenvolve para dominar sua própria imagem diante do espelho e, sua expectativa em dominar todos que a cercam, mantendo-os servos de suas vontades e desejos. Fazendo isso, a criança reduz os papéis sociais de pai e mãe, a papéis de seu mundo pessoal e privado. Essa fase será modificada e terminará aos poucos, através dos limites que a educação irá lhe impor. Esses limites serão os balizadores que produzirão uma resistência construtiva ao egocentrismo acentuado da criança. Limites impostos pelos pais, pelas pessoas que cercam essa criança, preparando-a para lidar no futuro, com os limites impostos pela realidade da vida. A partir de então a criança percebe que seu "poder" é limitado, que as pessoas que a cercam não são suas servas e que a convivência com o mundo vai lhe exigir novas posturas e "novos repertórios" que terão que ser descobertos por ela mesma.

As limitações impostas pelos adultos forçam a criança a identificar-se com eles, utilizando isso como estratégia para reconquistar seu "poder". Ao identificar-se com o adulto e representar ludicamente o seu papel ("... agora eu sou a mamãe e vou calçar seu sapato e usar seu colar; ... agora eu vou trocar a fralda da boneca porque ela fêz cocô; vou fazer a comidinha da boneca; etc), a criança passa a conquistar o que Moreno chamou de "função psicodramática": capacidade de jogo simbólico onde inverte os papéis com os pais e descobre através dessa vivência, a rede dos papéis sociais na qual está inscrita sua identidade. Nesse estágio a criança desenvolve a capacidade de catalisar o imaginário e transformá-lo em ação, unindo fantasia e realidade, através de uma ação espontânea de conquista simbólica do mundo. Sua capacidade de ser criativa transformando fantasias em ações, está em pleno funcionamento. Seu corpo se transformará em um "agente de conhecimento", descobrindo sua posição no mundo cultural, o mundo verdadeiramente humano, deixando o isolamento e a marginalidade do mundo privado e egocêntrico. O corpo passa a ser chamado de "corpo cultural" ou "corpo simbólico", onde o reconhecimento de "si" se cristaliza e, surge o reconhecimento do "outro" ("... quero brincar com minhas amiguinhas; papai chegou; vovó faz comidinha gostosa; etc). Quando passa a reconhecer as outras pessoas e a respeitá-las enquanto seres singulares que não estão única e exclusivamente à "seus serviços", a criança conquista a unidade de "ser-no-mundo", através de um "corpo ativo", que reconhece sua posição real e que, por isso mesmo, é capaz de transformá-la, através do desempenho e da recriação do papel inicial que lhe foi destinado pelas expectativas dos adultos. As brincadeiras lúdicas onde a criança representa papéis que imitam os adultos, transformam a espontaneidade instintiva, antes como uma simples capacidade adaptativa, numa função criativa e renovadora.
"Agora o corpo vive mergulhado no real, posicionando-se segundo seu fluxo de transformação: como corpo simbólico é capaz de apreender o real humano, situar-se frente às contingências do presente e catalisar o imaginário, transformando-o em ato criador" - J.L.Moreno.

Em minha próxima postagem continuo com as fases do desenvolvimento, abordando aspectos da psicopatia.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Identidade e Papéis

Recebi um comentário intrigante e muito interessante em minha última postagem: "o sofrimento reside no fato de sempre sermos atores, mesmo quando de alguma forma, "desvendamos o drama inconsciente." O comentário se estendeu com uma outra indagação, baseada na experiência pessoal de sua autora: "Os momentos de clareza e paz mais profundas se apresentam quando a identidade esta 'ausente' ... ou pelo menos em segundo lugar." Num primeiro momento essas indagações me pareceram muito procedentes e muito atraentes. Concordo totalmente com o fato de termos que representar papéis o tempo todo e que isso é, via de regra, causa de muito sofrimento, sem dúvida nenhuma. Me lembrei de casos de pacientes, familiares e amigos, infelizes por terem que desempenhar papéis e funções, incompatíveis com seus desejos e anseios. Mas havia algo que não batia - como podemos não ter nenhuma identidade? Isso é possível? Percebi que essas questões precisavam ser melhor organizadas, como forma de se buscar respostas: a) O sofrimento reside no fato de estarmos sempre desempenhando papéis, o que de alguma forma nos torna "falsos" ou "não autênticos", causando sofrimento emocional e psíquico?; b) A ausência da "identidade", pode nos tornar mais livres, mais claros e mais profundamente felizes?

Procurando por respostas dentro da teoria psicodramática, li que o homem é um "ser-em-relação" e um "ser-no-mundo", conforme a teoria existencialista de Heidegger. Um "ser-em-relação" com ele próprio e com o mundo, por estar no mundo. Não há como se relacionar sem o suporte da "identidade", que é a forma como o homem é enxergado pelas outras pessoas, independentemente de ser bom ou ruim. E toda identidade é acompanhada por uma infinidade de papéis, que irão dar o suporte e a aparência dessa "identidade".  Mesmo quando meditamos ou buscamos a ajuda de um mestre, temos a identidade do "buscador", da "pessoa que se trabalha", etc. O mesmo ocorre com o mestre. Quando o procuramos, o procuramos por saber quem ele é e como pode nos ajudar. Mas se as coisas são assim naturalmente, por que há o sofrimento? Para o psicodrama, o sofrimento pode estar atrelado ao fato de desempenharmos papéis e identidades que não se afinam com a nossa essência, que via de regra é inconsciente. Muitas vezes sequer percebemos que estamos sofrendo muito, por estarmos representando papéis que não queremos. Papéis e identidades que se constituiram para obtermos a "aprovação" do meio em que estamos inseridos. O papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas estejam envolvidas. Provavelmente em uma experiência muito pessoal, que envolva meditação e práticas específicas, haja a possibilidade de haver um afastamento dos papéis que representamos no dia-a-dia. Mas acredito que quando esse afastamento ocorre, imediatamente entra em cena um outro papel e uma outra identidade, mais profundos e mais verdadeiros, compatíveis com aquela situação. Mas continuam sendo papéis e identidades.

As teorias psicodramáticas de forma geral, levam o conceito de "papel" para todas as dimensões da vida, do nascimento a toda a existência, enquanto experiência individual e modo de participação na sociedade. O termo "papel", compreende as unidades de representação teatral e de ação e funções sociais. Para o psicodrama sempre "somos atores" e sempre estamos "representando papeis". No livro "Lições de Psicodrama - Gonçalves, Salles Camila; Wolff, Roberto José; Almeida, Castello Wilson - Editora Agora - 1988", os autores ressaltam que na vida real, em sociedade, os indivíduos tem funções determinadas por circunstâncias sócio-econômicas e por sua inserção em uma determinada classe social. Assim há papéis profissionais: marceneiro, encanador, médico, dentista, etc.; pepéis dterminados pela classe social: patrão, operário, sem-terra, fazendeiro, etc.; pepéis constituídos por aitudes e ações: líder, revolucionário, negociador, repressor, etc.; papéis afetivos: amigo, inimigo, companheiro, etc.; papéis familiares: pai, mãe, filho(a), patriarca, sucesso da família, desastre da família, etc.; papéis institucionais: diretor, deputado, coordenador, reformador, etc.
Na próxima semana retomo a Matriz de Identidade e o desenvolvimento, caso esse assunto de hoje se esgote.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Matriz de Identidade de Moreno - "Corpo-disperso e Corpo-parcial"

Após meu´último texto sobre o espetáculo de Ivaldo Bertazzo (O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies), resolvi reler "A Dimensão e o Significado do Corpo no Psicodrama" de Alfredo Naffah Neto - (Editora Agora - 1990). Por sua profundidade, capacidade de fundamentação filosófica e clareza em informar, sem dúvida esse é um dos livros que considero como indispensável para qualquer estudante de psicodrama. Naffah descreve a forma como o psicodrama dimensiona a existência humana: "um grande drama representado por múltiplos atores e cujo enredo lhes é, via de regra, inconsciente." Moreno dizia que: "isso se assemelha a uma peça teatral, onde o diretor escolheu um cenário, um figurino e uma série de cenas brilhantes e sedutoras, representadas por tipos, heróis, máscaras e diálogos sobre a eternidade, a fim de distrair o nosso espírito dos acontecimentos da terra. E assim funcionam milhões de grupos sociais, famílias, escolas, fábricas, igrejas,, nações, etc." Compara esse movimento a uma "sina" que compromete a existência humana a esse entrecruzamento de grupos sociais. A partir dai,  descreve-o como um "ser-em-relação" e como um "ser-no-mundo", recuperando o movimento existencialista de Heidegger.
Pois bem, a visão terapêutica desse movimento procura facilitar para que esses "atores inconscientes", possam descobrir-se como parte do drama, cuja autoria não participaram mas no qual vivem lançados pelo simples fato de existirem - desde o início - no interior das instituições humanas. Drama que se repete por gerações e cuja matriz pode ser encontrada num certo tipo de estrutura sócio-econômica e política, da qual a família se faz representante primeira. O grande palco utilizado por esses "atores inconscientes", é o corpo.. A constituição, transformação e até mesmo a perda desse corpo, se dá através de um processo histórico, descrito por Moreno quando fala sobre o desenvolvimento infantil, como fases da Matriz de Identidade.

Moreno chamou de "corpo-disperso" o corpo do recém-nascido, que ainda está formando o seu "eu". A identidade da criança com o mundo que a rodeia, ainda é total. Não consegue se distinguir da mãe e nem dos objetos que entra em contato. Ainda não percebe seu próprio corpo como sua própria identidade. Concentra-se em ações momentâneas como: mamar, urinar e defecar, existindo tão somente (o corpo) como função fisiológica, ou "papel psicossomático". Este tipo de vivência pela criança, proporciona um "extase existencial". A partir dessas vivências, passa a identificar determinadas zonas corporais e o momento em que entram em funcionamento. Nessa fase o corpo vivido é um "corpo-parcial", sem unidade no tempo e no espaço. Somente após a maturação do sistema nervoso e do reconhecimento que receberá das pessoas que a rodeiam, é que a criança começará, aos poucos, a unificar essas vivências parciais e momentâneas, conquistando uma vivência unitária do próprio corpo. O reconhecimento da criança enquanto um ser singular, está diretamente relacionado a constituição de sua identidade, ou da capacidade da criança em se reconhecer como um "corpo singular", que é capaz de expressar seus próprios anseios e desejos. Nessa fase, embora a criança ainda esteja vivenciando seus momentos de "corpo-disperso e corpo-singular" enquanto papel psicossomático, ela já possui um papel social: o papel de filho, no qual foi lançada desde o primeiro momento de vida, mesmo sem saber. Neste momento da existência da criança, seu destino está atrelado às maiores ou menores possibilidades de sua família. E a transformação e maturação desse corpo, também está diretamente associada aos resultados desse período.
Em minnha próxima postagem continuo com as fases de desenvolvimento.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies de Ivaldo Bertazzo

Tive a incrível sorte de assistir a tempo (a última apresentação foi em 17/10), o espetáculo da Cia Teatro e Dança Ivaldo Bertazzo "O Corpo Vivo - Carrossel das Espécies". Mais uma vez me senti surpreendido pela beleza, sensibilidade, bom humor e profundidade com que Ivaldo realiza seus trabalhos. De uma forma poética e bem humorada, a coreografia  linda, bailarinos fantásticos e uma trilha sonora capaz de fazer rir e chorar, Ivaldo propõe uma reflexão sobre o corpo humano e seus movimentos. Busca no movimento das espécies, associações com as diversas fases da existência humana, propondo que de uma certa forma, a espécie humana é a única que tem dentro de si todas as outras espécies. No início somos peixes que nadam dentro da barriga da mãe. Depois do nascimento rastejamos como répteis até engatinharmos ou "andarmos de quatro", como os quadrúpedes. O último estágio é o das aves, mas nesse momento o movimento de "voar" só pode ocorrer no mundo da poesia, das idéias, dos sonhos e da imaginação. De acordo com Ivaldo, se não atingirmos esse "estágio do vôo" (da capacidade imaginativa e poética), adoecemos e morremos cedo.
Os diversos movimentos de todas as espécies que "já estão" de uma certa forma dentro das pessoas, podem vir a ser acessados através do processo de reeducação do movimento, que visa ampliar o leque de possibilidades de nos postarmos no mundo. Em uma entrevista dada no programa Metrópolis da TV Cultura, Ivaldo menciona que a postura vertical está cristalizada no homem. Menciona que o bicho homem faz tudo verticalmente e do ponto de vista da saúde (que normalmente tem uma visão evolucionista...), há discussões que conduzem a se atribuir a causa de diversas patologias, ao "excesso de postura vertical": hérnia de disco, hemorróidas, apnéia do sono, joanetes, artrose nos joelhos, prisão de ventre, etc.

Alem de todas características artísticas e poéticas maravilhosas do trabalho de Ivaldo, meu encantamento também se deu pela correspondência teórica de sua visão, com alguns preceitos básicos do psicodrama e da saúde psíquica e existencial: espontaneidade e criatividade como únicas alternativas de se revelar o drama interno e insonsciente. Para o psicodrama o "corpo" é o fundamento existencial onde se apoiam os "diversos atores internos", que interpretam os papéis representativos do "drama sempre inconsciente", a ser vivido por cada pessoa. Esse corpo está cheio de amarras e surge de forma mecanizada, repetitiva e alienada, sempre a serviço desses papéis. Essas amarras foram uma resposta a sua incapacidade de transformar fantasias e pressões, ocorridas num passado distante, mais precisamente nas fases do desenvolvimento orgânico e psíquico (ele já foi peixe, réptil e quadrúpede...), mas que hoje ainda permanecem, tornando-o uma espécie de "porta-voz" desse drama inconsciente. Essa mecanicidade que está cristalizada nesse "corpo", surge como uma barreira que reforça a ilusão de que "não há mais nenhum outro movimento possível". Esse é o "mal maior" responsável por tanto sofrimento psíquico, nos dias de hoje.  Acreditamos piamente que não há mais nada a se fazer...
Alem de todos os problemas de saúde já citados, a chance desse corpo em não atingir o "estágio das aves" e desenvolver sua capacidade poética e imaginativa, é muito grande. Penso que a reeducação do movimento surge como uma das formas desse corpo ampliar seu repertório e seu leque de opções, sendo ao mesmo tempo, o terreno fértil para o surgimento da espontaneidade e da criatividade.

Links para se saber mais sobre Ivaldo Bertazzo: http://twitter.com/ivaldoBertazzo e http://www.facebook.com/profile.php?id=100001249255005#!/profile.php?id=100000053182212

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Insônia Crônica 4 - Emergência e psicoterapia de apoio

A insônia e seus efeitos iniciais produzem a sensação de que a pessoa conseguirá resolver sozinha essa dificuldade. Muitas vezes isso não acontece e depois de passar muito tempo (as vezes muitos anos) buscando alternativas e lutando contra, é que o sujeito vai finalmente buscar ajuda especializada. E a maior parte dessa demanda se concentra nos ambulatórios do serviço público de saúde, que não está preparado e não tem condições de dar assistência psicológica integral. A opção mais adequada é a utilização da psdicoterapia de apoio, combinada com a clínica interdisciplinar. Como já dissemos antes, a psicoterapia de apoio é orientada para a mudança de comportamento e alívio de sintomas, utilizando-se em especial de técnicas sugestivas, persuasivas, reeducativas e tranqüilizantes. Essa é a forma de tratamento psicológico mais utilizada em pacientes que sofrem de insônia, em função da "emergência"  com que normalmente esses casos se apresentam. Independentemente do tipo de abordagem escolhida pelo(a) psicoterapeuta (psicanalítica, psicodramatista, comportamental, etc...), o que se procura fazer num primeiro momento, é tirar o paciente da crise aguda em que se encontra.

São muitas as abordagens psicoterápicas que produzem resultados positivos no apoio e acolhimento de pacientes acometidos por insônia. As terapias comportamentais são as mais utilizadas e mais reconhecidas cientificamente, por terem realizado ao longo de muito tempo, inúmeras pesquisas com publicação de seus resultados em editoras especializadas. O psicodrama que é a minha abordagem, está sendo avaliado cientificamente através do meu trabalho de mestrado pela UNIFESP. Parte desse trabalho foi realizado em 2009, com  ensaio clínico que envolveu 150 voluntários. Neste momento os dados estão sendo avaliados estatisticamente e, embora ainda necessitem de comprovação, posso dizer de antemão, que os resultados tendem a se assemelhar ao das terapias comportamentais. Pretendo publicar futuramente, um texto específico sobre a utilização do psicodrama no tratamento da insônia crônica, abordando tanto a psicoterapia de apoio, como a psicoterapia profunda.

Os fatores que reconhecidamente podem manter a insônia, são: hábitos inadequados de sono, ausência de uma rotina regular para dormir e acordar e crenças e atitudes disfuncionais sobre o sono (ruminações e preocupações que ocorrem antes e durante a hora de se dormir). As terapias psicológicas comportamentais adotam algumas estratégias que normalmente são bem sucedidas e, visam "quebrar" esse círculo vicioso. Vale lembrar que esse círculo vicioso inclui fatores fisiológicos, psicológicos e comportamentais, tornando sua modificação muito difícil, o que acaba por aumentar em muito a "resistência" do insone. As técnicas mais utilizadas são:
  1. Restrição de sono: A restrição de sono consiste na diminuição do tempo gasto na cama, em que o insone procurou em vão, "pegar no sono". Ou seja, se o sujeito não tem sono, ele deve sair da cama e de preferência, do seu quarto, só retornando no momento em que sentir sono.
  2. Controle de estímulos: Visa estabelecer uma nova associação cognitiva entre a cama e o quarto, com o sentimento de sono. O insone costuma "ruminar" e permanecer acordado, em sua própria cama. Isso faz com que mantenha uma associação "falsa", de que "ir para a cama", significa "ficar preocupado".  Estabelecer essa nova associação implica na implantação de uma nova e rigorosa rotina, que inclui: dormir e acordar, sempre no mesmo horário; evitar cochilos durante o dia; usar a cama e o quarto somente para dormir evitando atividades incompatíveis com o sono como assistir TV, ler e comer; sair da cama após 20 minutos sem conseguir dormir; ir para a cama somente quando estiver cansado e com sono.
  3. Treino em relaxamento: Esse procedimento tem como objetivo a redução da tensão, do estresse e da ansiedade. Tratam-se de técnicas específicas que são praticadas nas sessões de terapia, como: relaxamento muscular progressivo; treinamento autógeno (foca a redução do "acordar"); treino de imaginação; meditação; parada de pensamento, etc.
  4. Terapia Cognitiva: Implica em fornecer informações básicas sobre o sono normal, as diferenças individuais sobre a necessidade de sono e suas diferenças durante a vida. O foco aqui está em modificar crenças e atitudes consideradas "disfuncionais" para com o sono. A infofrmação ajuda o insone a ter mais consciência sobre seus sintomas, diminuindo muito, o excesso de preocupação.
  5. Higiene do sono: Procedimentos gerais que podem ser adotados pelo insone e visam proporcionar uma boa noite de sono: práticas saudáveis como dietas e exercícios, utilização ou não de substâncias, etc; fatores ambientais como luz e temperatura; informações sobre os benefícios de se manter uma boa rotina de sono.
Estudos tem revelado que de 70% a 80% dos pacientes com insônia primária, tiveram benefícios com o tratamento cognitivo comportamental. Esses benefícios podem ser sintetizados em: aumento médio do tempo total de sono entre 30 e 45 minutos; aumento da satisfação com o próprio sono; redução dos sintomas psicológicos; redução do uso de medicação hipnótica.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Insônia Crônica 3 - Fazer psicoterapia para tratar a insônia, é eficiente?

Nos últimos dias recebi uma infinidade de perguntas com relação a eficiência da psicoterapia, tanto voltada para o tratamento específico de insônia, como também para outros fins. Procurei fazer uma síntese e elegi as que de uma certa forma representam todas as outras. Ai vão alguns exemplos: "O que seria fazer tratamento psicológico para combater a insônia? Ficar falando da própria vida e dos problemas, resolve o problema de insônia? Falar sobre si com os amigos, num boteco, não é mais barato e a mesma coisa? Se ao invés de ir ao psicólogo(a), ir conversar com o padre, não tem o mesmo efeito? Psicoterapia não é recomendado só para quem não é "bem resolvido"? Se o médico acertar o meu remédio e ele fizer efeito, já não é suficiente?"  Fica evidente através dessas e muitas outras perguntas, que existe uma dúvida e um certo desconforto em se buscar ajuda psicológica. Seja ela motivada por uma queixa de insônia, ou de qualquer outra natureza. Penso que em primeiro lugar precisamos procurar responder a seguinte pergunta: O que é psicoterapia? É uma forma de tratamento que visa terminar ou diminuir o sofrimento psíquico de um indivíduo, através do acolhimento, da continência e de técnicas específicas, chamadas de "técnicas mentais". Podemos dividir a atuação psicoterápica em duas frentes: A psicoterapia de apoio que é orientada para a mudança de comportamento e alívio de sintomas, utilizando-se em especial de técnicas sugestivas, persuasivas, reeducativas e tranqüilizantes. Já a psicoterapia profunda é orientada para as questões inconscientes e mais profundas do indivíduo, recorrendo às técnicas catárticas que variam da psicanálise clássica ao psicodrama. Espera-se que com o uso dessas técnicas, crie-se um ambiente facilitador para que o indivíduo consiga através do autoconhecimento, dissipar ou reelaborar suas angústias e desconfortos, prováveis fontes desse sofrimento psíquico ou desequilíbrio emocional.

Em outras palavras, a "cura" para a psicoterapia tem um significado muito diferente, por exemplo, da "cura" de uma cirurgia, onde um tumor tenha sido estirpado. Neste segundo caso, a "cura" levou de volta o paciente, ao seu estado "de normalidade", anterior à sua doença.  Para a psicoterapia, a "cura" é a atenuação ou o dissolvimento do sofrimento psíquico, permitindo que o indivíduo possa vivenciar um estado de equilíbrio emocional, onde suas potencialidades possam ser expressadas e realizadas. Isso significa que uma pessoa que tenha predisposição fisiológica para a insônia, continuará tendo a mesma predisposição, mesmo que venha a fazer psicoterapia. Mas provavelmente aprenderá a conviver com isso, aprendendo a respeitar os limites de sua história e de sua constituição. Uma psicoterapia é uma experiência que transforma, mas ao custo de uma mudança. Quando se termina um processo terapêutico, o sujeito não está sem um tumor ou sem uma dor, o sujeito está "outro sujeito".
Um outro fator importante que deve ser considerado, é a confiança ou desconfiança em determinado tipo de tratamento. Já ouvi queixas de pacientes que tinham receio em tomar medicações receitadas por seus médicos. Nesses casos, quase sempre as medicações, ou não produziam o efeito desejado, ou se produziam, eram resultados muito singelos. O mesmo acontece na psicoterapia. Se não há confiança no profissional ou no tratamento, seus resultados são inócuos. Esse fenômeno é muito bem explicado pela psicanálise, em obras inteiras que referem-se a esse assunto como "o estudo da transferência". Para falar sobre a "transferência", seria necessário se escrever muito, em várias postagens e esse não é meu objetivo aqui. Mas a "transferência" pode ser traduzida aqui como a "confiança" depositada no profissional ou no tratamento que está sendo proposto. Ela não se define ou pode ser alcançada de modo racional e objetivo. Ela simplesmente acontece, ou não acontece. Estudos científicos que tratam esse assunto já demonstraram que "o remédio"  receitado por um médico que goza da "confiança" de seu paciente, tem um resultado muito mais efetivo do que se fosse ao contrário.

Voltando a psicoterapia para tratamento de insônia: Pois bem, sabe-se que somente o uso de medicações para combater a insônia, muitas vezes produz um resultado abaixo do esperado. Isso pode ser demonstrado pelos inúmeros casos de pacientes que se vêem obrigados a procurar por seus médicos, solicitando  a troca da medicação, ou o aumento da dosagem. Isso pode ocorrer em função de dois fatores potenciais: 1) A origem multifatorial da insônia - como já dissemos antes, existem fatores fisiológicos, psicológicos e comportamentais que podem  estar influenciando o quadro de insônia. Por exemplo, um paciente toma a medicação para a insônia, mas não modifica seus hábitos tornando seu efeito ao longo do tempo, abaixo do esperado.
2) O resultado relativo de algumas medicações, quando são utilizadas por um longo tempo, podem causar dependência e também o indesejado efeito "rebote" (efeito rebote significa que o remédio passa a fazer efeito contrário ao seu propósito inicial). Ao mesmo tempo, é impossível se aplicar técnicas psicológicas que estimulem o autoconhecimento e o amadurecimento emocional, em pacientes que estão em um quadro agudo de depressão, ansiedade e insônia. Sem a ajuda do "remédio", o tratamento psicológico não fará progressos e nem se estabelecerá, pela impossibilidade do paciente e do terapeuta, em  construir um vínculo que permita esse trânsito (a transferência relatada acima).
Nesses casos a busca mais importante a se fazer, é a busca pela remissão dos sintomas, da maneira mais rápida possível. É preciso se ajudar o cliente a sair de um quadro agudo, buscando diminuir rapidamente,  seu sofrimento. Nesse momento a psicoterapia torna-se "de apoio", combinando sua atuação (que pode ter várias formas e maneiras, dependendo de cada caso), com o uso de medicação prescrita por um médico especializado. Uma vez "estabilizado" o quadro, a psicoterapia pode (ou não) evoluir para uma segunda etapa, onde questões inconscientes mais profundas tornam-se mais evidentes e passam a ser o foco do trabalho.

Essa combinação tem produzido efeitos significativos em pacientes que sofrem de insônia. Os resultados mais conhecidos passam desde a a redução de dosagens das medicações prescritas, até a abolição de seu uso, por completo. Para quem quiser saber mais sobre esse assunto, há um artigo científico inteiro que demonstra que a psicoterapia combinada com o uso de medicação benzodiazepínica, produziu os melhores resultados em pacientes acometidos por insônia crônica (Dose-Response Effects of Cognitive-Behavioral Insomnia Therapy: A Randomized Clinical Trial - Jack D. Edinger, PhD1,2; William K. Wohlgemuth, PhD3; Rodney A. Radtke, MD2; Cynthia J. Coffman, PhD1,2; Colleen E. Carney, PhD2). 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Insônia Crônica 2 - Automedicar-se não é eficiente!


Recebi duas perguntas na publicação anterior (insônia crônica 1), sobre o uso e eficiência de medicamentos para a insônia. Foram questões muito pertinentes que acredito que serão respondidas através desse texto. O tratamento de insônia deve primeiro ser bem diagnosticado por um médico especializado no sono, e somente depois é possível se determinar a opção mais adequada de tratamento a ser seguida. Como já foi dito antes, muitas vezes o médico precisa realizar um diagnóstico diferencial para investigar com maior precisão suas causas e consequências. Problemas psiquiátricos como: depressão, ansiedade e distúrbios do humor, podem estar influenciando, diretamente no sono. Outros distúrbios do sono como apnéia, alterações do ritmo circadiano, SPI (síndrome das pernas inquietas) e parassonias (sonambulismo, bruxismo, etc), podem estar presentes, sendo "mascarados" pela sensação de insônia. Questões ambientais e comportamentais como: má higiene do sono, hábitos sociais incompatíveis e má qualidade de vida, são fatores que também podem estar influenciando decisivamente. Todos esses fatores se misturam dinamicamente e tornam muito complicados, não só o diagnóstico e o tratamento, mas também a própria percepção que o insone tem do seu problema. Imagino que essa "confusão" e percepções distorcidas, associadas ao hábito sócio-cultural da automedicação, sejam os fatores que mais pesam sobre os altos custos sociais e econômicos que dissemos anteriormente. Por essa razão, considero útil afirmar que a auto-medicação é uma prática perigosa e quase sempre, pouco eficiente. Um bom exemplo do perigo da auto-medicação: Se uma pessoa ronca muito ou tem apnéia e não sabe disso por nunca ter feito uma avaliação ampla com um especialista, pode estar cometendo um grave erro ao ingerir "calmantes para dormir". Alem de continuar acordando durante a noite, isso irá piorar o seu quadro de apnéia, pondo o sujeito em grande risco. Pessoas que sofrem de distúrbios psiquiátricos como depressão, ansiedade, etc, precisam ter sob rigoroso controle as dosagens de medicações que devem faser uso, sob risco de não resolver adequadamente seus problemas originais, alem da própria insônia. Somente um médico especialista pode fazer essa avaliação de maneira correta e segura e, se for o caso, prescrever a medicação e a dosagem adequadas.

São muitos os fatores que devem ser levados em conta para que uma avaliação seja feita de maneira ampla e segura. O histórico médico individual do insone associado ao seu modo de vida, deve ser levado em consideração quando se avalia corretamente a insônia e seus sintomas. Existem pessoas que possuem uma "propenção fisiológica" para a insônia. Isso sugere que a insônia possa estar associada ao fato de que o indivíduo que sofre de insônia, tenha uma "propensão" para despertar "antes" do período preferido de sono. As pessoas que possuem essa "propenção" por exemplo, são mais sensíveis a ingestão de cafeína em excesso. Para elas, tomar um cafezinho após as 18:00 pode ser decisivo para que não consigam dormir a noite. Outros comportamentos noturnos como: comer em demasia, assistir TV no quarto, ouvir música na cama, etc, também produzem um efeito devastador no sono dessas pessoas. O mais interessante, é que normalmente o insone não sabe que tem essa "propensão" fisiológica. E por essa razão passa a considerar que a sua falta de sono precise do uso incondicional de alguma medicação. Não necessariamente, isso é verdade.

Quase sempre essa propensão é combinada com uma característica emocional, marcada pela "ruminação e preocupação" em excesso, que acaba por reforçar o quadro de insônia. Os especialistas chamam esse tipo de insônia de "insônia cognitiva". A insônia cognitiva precisa de três fatores determinantes para se instalar: 1) Fator de predisposição: indivíduos dados a ruminar e se preocupar são mais sensíveis aos episódios estressores da vida; 2) Fator de precipitação: problemas e dificuldades que a vida traz em determinados momentos, que induzem a pessoa ao estado de "alerta" contínuo (chamado de "hiperalerta" pelos especialistas), que acaba levando o sujeito ao despertar somático; 3) Fator de perpetuação: a pessoa passa a se preocupar excessivamente com o "dia seguinte" e com sua dificuldade em dormir, pasando a ter crenças e comportamentos disfuncionais (disfuncionais para com o sono...), criando um ciclo vicioso que piora cada vez mais esse quadro. Estar em alerta permanentemente, alem de muito desgastante, produz uma "atenção seletiva" permanente (uma atenção voltada para a preocupação constante). Como consequência passa a ter uma percepção distorcida da realidade. Sem ter controle direto sobre isso (esses episódios ocorrem sem que a pessoa tenha controle ou consiga fazê-los parar), a pessoa passa a monitorar o ambiente sempre a procura de "sinais ameaçadores" (barulhos, relógio, ruídos, etc). Me lembro de uma paciente muito divertida, que dizia "odiar" os sabiás por eles cantarem por volta das 3:00 da manhã, impedindo-a de conseguir dormir. A busca incessante por "sinais ameaçadores", também é dirigida para o próprio corpo do insone (sensações corporais, temperatura, etc). Já ouvi relatos de um paciente que ficou aterrorizado com "os barulhos" de sua barriga, durante a noite. Com tudo isso ocorrendo, a hora de dormir passa a ser enxergada como "a hora do calvário", porque o sujeito já inicia o seu processo de "ruminação" e de preocupação com o seu próprio sono, na medida em que o horário de ir para a cama vai se aproximando. Para fugir desse sofrimento e dessa angústia, passa a incorporar outras atividades como forma de "passar o tempo" de falta de sono. São hábitos e atividades normalmente incompatíveis com o sono que o insone pratica na própria cama: assistir TV, ouvir música, falar no telefone, trabalhar no computador, comer, etc. Essas atividades fazem com que a angústia do insone melhore, mas prejudicam em muito a possibilidade de haver um sono restaurador.

Como no dia seguinte o cansaço e a sensação de sonolência são inevitáveis, o sujeito passa a evitar tarefas e relações que lhe exijam muito esforço, por absoluto cansaço e falta de energia. Os nervos ficam "à flôr da pele" e a sensação de que a vida fica mais "sofrida", são aumentadados exageradamente. O insone passa a ter a crença de que não é compreendido pelas outras pessoas, aumentando a auto-comiseração e a sensação de impotência frente aos problemas da vida. Sua auto-estima diminui sensivelmente e esse é um bom exemplo da "visão distorcida da realidade", que mencionamos acima. Esse processo passa a ocorrer na forma de um ciclo vicioso e com o passar do tempo, a pessoa acometida por insônia não sabe mais diferenciar o que está acontecendo consigo. Os hábitos adquiridos como forma de defesa contra a angústia da falta de sono, são introjetados e cristalizados, transformando-se em rituais quase que imutáveis. O insone passa a ter a ilusão de que não consegue mais viver sem eles. Em outras palavras, o insone "desaprendeu" (no próximo texto essa expressão poderá ser melhor compreendida) que o sono é simplesmente o ato de ir para a cama e dormir.

Em resumo, dissemos que a insônia tem origem multifatorial (várias causas), e que seu diagnóstico precisa de uma avaliação ampla e segura, que deve ser realizada por um médico especializado no sono. Suas causas podem estar atreladas a três fatores que se combinam: 1) fatores de predisposição (propenção fisiológica que reforça o traço de "hiperalerta", fatores psicológicos que reforçam a tendência do sujeito em "ruminar" e se preocupar em demasia com os problemas da vida, e sociais onde o indivíduo desenvolve hábitos e modos de vida incompatíveis com uma boa noite de sono); 2) fatores de precipitação (eventos estressantes que fazem parte da vida de qualquer pessoa, que para o insone tem um efeito devastador); e 3) fatores de perpetuação (comportamerntos que o insone desenvolve para compensar sua angústia e sua falta de sono - a prática de ficar acordado na cama, lendo, assistindo TV, ouvindo música ou qualquer outra atividade incompatível com o sono).

A auto-medicação é um grande equívoco por muitas vezes não produzir o efeito esperado, e também por ser uma prática perigosa. As terapias que mais tem produzido efeitos positivos no tratamento da insônia, são a combinação entre os tratamentos farmacológico e psicológico. A clínica "interdisciplinar" procura tornar as pessoas "menos dependentes" de medicações, sempre que possível, por ser uma prática mais saudável. Em minha próxima postagem pretendo falar com maior profundidade sobre o tratamento psicológico da insônia.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Insônia Crônica 1 - Epidemiologia, impacto sócio-econômico e diagnóstico

Aceitei prontamente as boas críticas que recebi recentemente, me solicitando que postasse textos mais enxutos, mas sem o prejuízo da profundidade dos temas. Escrever aqui está sendo uma experiência muito construtiva e de um aprendizado enorme. Vou procurar por em prática esse novo método, escrevendo  sobre a insônia crônica através de várias postagens, em funão da enorme complexidade do assunto. Nesse primeiro texto da série, pretendo falar sobre a epidemiologia, impacto sócio-econômico da insônia e da dificuldade da prática clínica em investigar, definir seus sintomas e proporcionar tratamento adequado.

Já dissemos aqui que a insônia é definida como "a percepção de sono insuficiente, motivada pela incapacidade que o indivíduo tem em iniciar e manter o sono". Outros sintomas baseados no sono e em queixas diurnas, também ajudam a determinar quadros de insônia, como: sono não restaurador, despertares que acabam se antecipando cada vez mais do horário de acordar, sonolência excessiva diurna, fadiga, dificuldades cognitivas, prejuízos funcionais e operacionais, alterações drásticas de humor, etc.  Sua prevalência (percentual da quantidade de pessoas afetadas na população geral) estimada de maneira muito modesta, oscila entre 4,4% e  11,7%. Segundo os especialistas, a prevalência da insônia é muito difícil de ser estimada em função de haver muitas variações entre os estudos até então realizados. Variações sócio-culturais e geográficas, que acabam dificultando a elaboração de um critério mais claro para a definição e classificação da insônia, sua freqüência e severidade de sintomas.  De qualquer forma, estudos sugerem que a insônia crônica seja mais presente no mundo ocidental e que mulheres e pessoas com idade avançada tenham uma maior propenção em apresentar esse quadro.

Não é difícil imaginar que uma pessoa que não tenha dormido adequadamente possa enfrentar muitas dificuldades em sua vida cotidiana. Acidentes de trânsito, domésticos e de trabalho, aumento da ansiedade e pânico, depressão, abuso de substâncias, diminuição do vigor físico, problemas de relacionamento, problemas cardíacos, etc. Todos esses sintomas podem estar relacionados com a insônia. Obviamente há um impacto social e econômico significativo, se levarmos em conta o percentual de prevalência da insônia. Uma avaliação desse impacto realizada nos EUA (Stoller -1994), estimou um custo social /ano de mais de U$ 92 bilhões. Essa estimativa levou em consideração o fato de que insones procuram mais os serviços médicos psiquiátricos, faltam mais ao trabalho, e aumentam significativamente os custos da saúde pública, relativos ao tratamento. O mais interessante é que estudos realizados nos EUA revelaram que apesar dos altos custos, uma proporção substancial de insones, não é tratada - Gallup (1991) - somente 5% de insones procuraram por ajuda médica ou psicológica. Minha intenção aqui não é discorrer sobre o custo econômico da insônia, mas me valer desses dados para demonstrar a sua importância nos dias de hoje. Isso quer dizer que a insônia é muito mais comum e prevalente, do que imaginamos.

Por outro lado, verificou-se através desses estudos que a prática clínica encontra dificuldades em definir os sintomas da insônia, tendo a urgente necessidade de uma boa revisão dos métodos de investigação clínica. Por sua origem muiltifatorial e com conseqüências em diversos níveis (psiquiátricos, psicológicos, biológicos, e sociais) , a insônia exige a realização de um diagnóstico diferencial para ser bem diagnosticada e tratada. É muito comum eu atender pessoas com diagnóstico de insônia, que já passaram por vários tratamentos sem uma eficiência significativa. Atendi casos em que o paciente apresentava queixas iniciais de depressão e de distúrbios do humor, que na verdade eram sintomas secundários à insônia e vie-e-versa. Em outros atendimentos, tive pacientes que eram tidos como insones, mas na verdade possuiam outros distúrbios do sono, como apnéia ou SPI (Síndrome das Pernas Inquietas). Hábitos sociais incompatíveis e uma má higiene do sono também são processos iniciadores da insônia. Uma vez identificados e tratados, podem resolver o problema, sem a necessidade de auxílio farmacológico. Infelizmente, o que podemos observar no dia-a-dia é a forte tendência das pessoas se auto-medicarem, quase sempre de maneira inadequada, ao invés de procurar por ajuda especializada.